Histórico

Sobre mulheres, movimentos e mudanças

Miriam Adelman, professora de Sociologia na UFPR
03/03/2013 03:16
Se algum consenso foi gerado sobre os movimentos sociais e políticos do conturbado século 20 – período que, como bem notou a filósofa norte­­americana Jane Flax, marcou-se pela perda (coletiva) da nossa “inocência” – é que o mais bem sucedido deles tenha sido o movimento feminista, ou, talvez, em um sentido mais amplo, os movimentos de mulheres. Isto é, no século marcado por duas guerras mundiais, crises econômicas em escala planetária e ainda grandes sonhos e tentativas – frustradas, em muitos pontos – de criar formações sociais mais justas, mais igualitárias, foram poucos os momentos que geraram avanços claros.
A “primeira onda feminista” de fato iniciou-se no século 19, a partir dos esforços de pessoas que, em várias partes do mundo, desafiaram diversos aspectos da construção burguesa que relegava as mulheres à esfera privada e negava seu direito político mais básico, o voto. As discussões que este movimento ajudou a parir muitas vezes teciam relações com outras manifestações de hierarquia e desigualdade – como o legado da escravidão e as péssimas condições das massas trabalhadoras, nas grandes cidades dos países onde o sistema industrial já se encontrava consolidado. E o movimento foi interlocutor persistente na vida pública, até bem entradas as primeiras décadas do século 20, perdendo fôlego perante a conquista do voto feminino (1920 no caso dos EUA) e a grande depressão.
De fato, a “segunda onda feminista” que nasceu na década de 1960, principalmente nos EUA e em alguns países europeus, estendeu e aprofundou a crítica feminista de tempos anteriores. Suas reivindicações foram produto de uma nova geração de mulheres que, por exemplo, conseguia acesso às universidades mas continuava sentindo na pele a força de doutrinas que associavam o feminino a um leque muito limitado de possibilidades – e alguns graves paradoxos. (Como Simone de Beauvoir apontou, na cultura ocidental moderna, “a mulher era reduzida, simbolicamente, ao corpo” –, mas, ao mesmo tempo, como as novas feministas apontavam, não detinha o controle sobre esse corpo.) Eram tempos da revolução sexual e do que aparecia como um mundo de novas possibilidades – da “imaginação ao poder” e de jovens que não mais queriam prestar o corpo para as guerras e as instituições autoritárias maquinadas ou sustentadas pelas “velhas gerações”. As mulheres foram uma das forças mais dinâmicas nessa revolta de “novos sujeitos” – grupos que irrompiam no cenário político com nova voz e/ou nova visibilidade.
No novo milênio, após várias décadas tanto de mudança quanto de impasse, para alguns analistas estaríamos em um momento “pós-feminista”. Como muitas pesquisas nas ciências sociais contemporâneas mostram, uma boa parcela dos cidadãos e cidadãs das sociedades atuais tomam como ponto pacífico a questão dos direitos iguais de mulheres e homens na vida política, laboral e cultural, e as capacidades iguais de pessoas de “ambos sexos” em termos da contribuir para a vida pública e social. Une-se a isto o crescente respeito pela diversidade sexual e a compreensão de que há “muitas maneiras” de ser mulher, homem, pessoa. Para derrubar velhos preconceitos e barreiras, o momento cultural atual exigiria, portanto, uma desconstrução mais radical das próprias noções de “sexo” e “gênero”, fortemente moldadas por um antigo binarismo que obrigava a enxergar em branco e preto, aquilo que na realidade seriam as muitas cores e infinitos tons dos seres e das culturas humanas. Embora – e infelizmente – ainda longe de uma completa e duradoura conquista de muitas das metas do feminismo da segunda onda (os altos índices da violência contra as mulheres, as diferenças salariais e os discursos sexistas que permeiam os meios de comunicação no Brasil hoje o testemunham), essa meta, que inauguraria de fato um mundo “pós-feminista”, é o horizonte necessário para nossos dias atuais. Nossa agenda cotidiana é descobrir como realizá-la.
Miriam Adelman nasceu em Milwaukee, Wisconsin (EUA). É mestre em sociologia pela New York University e doutora em ciências humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mora em Curitiba desde 1991 e leciona Sociologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 1992.