José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Imaginário não é nome de loja

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
11/10/2020 19:00
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A
primeira vez que ouvi falar do “imaginário” – com apetite e conhecimento de
causa – foi em uma entrevista do cineasta catarinense Sylvio Back. Numa de suas
vindas a Curitiba – cidade onde trabalhou como jornalista a partir do fim da
década de 1950 e na qual filmou o longa-metragem que o alçou à fama, Lance Maior (1968) –, Back exercitou a
maior de suas virtudes: a sedução. A coletiva, em meados dos nos 1990, durou
horas e os repórteres da área da cultura saíram dela com um problema titânico –
o desafio de colocar todo aquele perfume no pequeno frasco da reportagem.
Se bem lembro, boa parte da conversa foi gasta numa defesa ardorosa do cinema, que passava por alguma inviabilidade tão crônica quanto aguda. Lá pelas tantas da longa fala, Sylvio reclamou que nós, brasileiros, sabíamos mais do imaginário americano – por causa dos filmes a que assistíamos da Sessão da Tarde à Sessão Coruja – que do imaginário brasileiro. Era sua maneira de dizer que havia filmes nacionais de menos e americanos de mais. E de endossar uma teoria bastante corrente à época – a de que as dimensões superlativas da sala escura eram a metáfora perfeita da grande caverna de Platão, onde são projetados os conceitos, memórias e objetos que formam o mundo. Cinema e imaginário, para Back, eram como duas colegiais que andavam de braço dado. Difícil discordar.
A afirmação sobre “a onipresença do imaginário americano” foi recebida como um puxão de orelha, seguido de palmatórias e castigo com orelha de burro. Restava seguir pela vida sabendo das obrigações com o imaginário brasileiro, captado a duras penas, desejando que se tornasse tão visível quanto o dos EUA – e que nos entendêssemos com essa batata quente. Tempos depois, ao assistir ao soberbo documentário América, de João Moreira Salles, confirmei que Back não dizia nenhuma asneira. Tudo o que Salles organizou em imagens para traduzir o gigante do Norte nos soa mais familiar do que a caatinga ou os campos neutrais: a grandiloquência das paisagens urbanas expressa nas freeways; os road movies; os cowboys e os astronautas; a arquitetura drive-in. Somos mais capazes de discorrer sobre o que representa a garçonete entediada vivida por Susan Sarandon em Thelma & Louise do que sobre a Macabeia de A hora da estrela.
Sylvio Back reclamou que nós, brasileiros, sabíamos mais do imaginário americano – por causa dos filmes – que do imaginário brasileiro
O tempo
mostrou que calibrar o próprio imaginário não é só questão de acesso a mais
filmes, mais livros, mais peças de teatro e músicas do Chico Buarque e do
Caetano Veloso. Mais do que decodificar o Garrincha e a Carmen Miranda. É
também lidar com as artimanhas da própria palavra “imaginário”. O termo habita
a categoria “falsamente fácil”. Diante do inexplicável, é comum recorrermos a
expressões tais como “tocou o imaginário popular” ou “atingiu o imaginário
afetivo”, mas resta a dúvida sobre como são acionados esses botões – que nos
levam a escolher amores abusivos, crenças tristes e políticos indecentes. O
imaginário é o diabo: não tem manual de instruções. É como se cada um tivesse de
criar seu próprio tutorial. E um tutorial nada mais é do que a simplificação de
um mecanismo, para que possa funcionar de maneira modesta.
Ocupar-se
do imaginário, em miúdos, dá uma trabalheira danada – e não causa espanto que,
para se safar do cansaço que a tarefa provoca, milhares de brasileiros prefiram
reduzir a vida a uma cartilha do mundo corporativo, essa linguagem dominante
que nos automatiza e brutaliza debaixo do véu da aparência e da eficiência. Em
vez de pensar de que barro somos feitos, sobre o que nos traduz, nos atiramos
feito aqualoucos em aventuras que prometem mais dinheiro a curto prazo e menos
encheção de saco. Pois é. Por mais que doa, continuo achando que o imaginário
se parece mais ao tortuoso altar de uma catedral, com sua confusão de velas,
asas de anjo, auréolas e santos com olhar beatífico, do que com o corredor de
mármore de um shopping. Voto vencido: o consumo passa rasteiras diuturnas na
cultura e é com esse veneno que estamos nos matando.
***
Uma das estudiosas mais supimpas do imaginário brasileiro foi a pesquisadora paulistana Marlyse Meyer (1924-2010). Era bamba em dois gêneros que “explicam” muito sobre nós: os almanaques e os folhetins. Os primeiros – populares no país desde o século 18 – nos ajudam a lidar com o dia a dia. Temos de ser pragmáticos no país de problemas que chegam sempre no atacado. Está ali o chá milagroso, a simpatia que cura, as fases da Lua. E também as curiosidades, que nos dão assunto para a conversa, nossa especialidade incontestável: estão nos almanaques as capitais do mundo, a piadinha infame, um “o que é, o que é?” qualquer que nos faz parecer mais sabidos. Se um objeto traduz a alma do brasileiro, permitam, esse objeto é o almanaque. As semelhanças entre o WhatsApp e o almanaque não são meras coincidências.
Quanto
ao folhetim, dispensa apresentações no país da telenovela. Passaram do rodapé
dos jornais do século 19 aos meios eletrônicos, sem nunca perder a pose.
Preenchem nossas noites, de forma seriada, que é para não cansar; e falam pelas
beiras sobre dilemas que incomodam menos quando tratados na ficção: as tensões
raciais, a desigualdade, os filhos não registrados e o risco do incesto, a
ascensão social pelo casamento. Novelas são sempre uma variação para o tema da
sujeira jogada debaixo do tapete. Somos mestres do disfarce e da simulação –
macunaímicas falhas coletivas de caráter tanto quanto equipamento de sobrevivência
na selva. Não causa espanto que nosso autor maior seja Machado de Assis, mestre
na pena, mas sobretudo mestre na compreensão do nosso imaginário. Somos a Capitu,
o Bentinho, o Brás Cubas...
No mais,
só com romance açucarado mesmo para conseguir digerir temas árduos como o
jeitinho, a fatalidade, a hierarquia (“você sabe com quem...”), o
conservadorismo nos costumes, o paternalismo, o machismo, entre outros espinhos
que maculam a maneira como gostamos de nos ver: cordiais, alegres,
hospitaleiros, religiosos, tolerantes. O imaginário é uma cozinha difícil, pois
forma um caldo com alimentos cujas cores e sabores não combinam, “tipo” o verde
e o amarelo da bandeira nacional. Diz muito, né?
A própria Marlyse Meyer – nossa autoridade maior no assunto – parecia sentir o tranco dessa peleja. Sua investigação acadêmica nem sempre causava simpatias. Ao que respondia com humor. Fundou o “Instituto de Altos e Baixos Estudos do Imaginário”, deixando o fio da suspeita que o nome do grupo era uma resposta aos pares que faziam caras e bocas diante da mulher que se ocupava de almanaques e folhetins, entre outras quinquilharias. Como diz o ditado popular – “quem desdenha quer comprar”. Sim, o imaginário – esse altar cheio de luzinhas, bandeirinhas, fitinhas, ex-votos – não é para amadores.
O imaginário é uma cozinha difícil, pois forma um caldo com alimentos cujas cores e sabores não combinam
Não faz muito tempo, reforcei essa máxima ao ler um ensaio sofisticado, assinado pelo pesquisador de arte Claudio Szynkier. Ele recorre ao conceito de “mundo da vida”, do filósofo Merleau-Ponty, para explicar os dias estranhos do Brasil a partir das manifestações de 2013. A definição de “mundo da vida” – uma espécie de filtro com o qual olhamos a realidade – é prima-irmã do imaginário. Não somos capazes de ver as coisas como elas são, mas apenas o cenário que formam. Viver é lidar com o invisível – sofremos de cegueira endêmica. Estamos sempre prestes a pisar em falso e, por supuesto, a cair de bunda.
A
novidade da análise de Szynkier é mostrar que costumamos entender esse fenômeno
como um treco parado no tempo. Algo como “estamos há seis séculos esperando a
volta de dom Sebastião, por isso votamos em salvadores da pátria que não valem
um ovo podre”. O imaginário, ou o mundo da vida, nos parecem um código impresso
no DNA, decifrável apenas com a ajuda de um equipamento de altíssima definição.
Mas o ensaísta defende que o imaginário é moldável, como um jogo, e se
materializa de maneira bem mais rápida do que podemos prever. Não raro, essa
brincadeira dá merda. O invisível encarna no visível com um estalar de dedos. Pode
ser uma salvação. Ou uma senhora roubada. O imaginário é melhor dos mundos. Seu
sequestro, o pior.
Beijos.

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