José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Um lugar chamado “refúgio”
José Carlos Fernandes
10/06/2022 18:48
Foi mais ou menos como a união da fome e a vontade de comer. A jornalista Isadora Hofstaetter e a historiadora Luciana Patrícia de Morais são uma fonte de mínimos-múltiplos-comuns. Pertencem à categoria “encontro de almas”. São dadas à antropologia – uma paixão. Ambas, em algum momento da vida, fizeram uma mudança radical de endereço: Isa se foi para Portugal, Lu veio de Minas para o Paraná, com pensão completa. Curtem Curitiba, mas sofrem de saudade crônica. Sabem o que é se sentir uma estrangeira. Carregam aquele “não-sei-o-quê” que entorpece os deslocados. Não bastasse, são acometidas de uma coceira danada de curar: o trabalho não lhes pode servir apenas para pagar os boletos do mês. O apetite por habitarem um mundo que faça sentido é tamanho que em 2015 se deram os braços e passaram a desenvolver uma pá de projetos culturais – em geral para o Hospital Pequeno Príncipe, instituição da qual são tietes confessas e indisfarçáveis. Experimente atiçar para ver.
Faz pouco tempo, decidiram se fiar com os refugiados. Trombavam com eles em Curitiba – considerando apenas haitianos, a cidade chegou a abrigar 2,5 mil. Não tardaram a se perguntar o que eles comiam, se achavam os ingredientes por aqui e se, quem sabe, não as receberiam para um almoço sem compromisso. Quando a curiosidade saiu pelas costuras, entenderam que deviam fazer um livro de receitas com os novos curitibanos, de sobrenomes diferentes. O assunto lhes interessava. Luciana integrou o grupo de pesquisa de História da Alimentação, contribuição original do professor Carlos Antunes dos Santos, ex-reitor da UFPR, morto em 2013; e Isadora se descobriu cozinheira assim que saiu da barra da saia da mãe; estágio aperfeiçoado nos quatro anos passados em Lisboa. Ou nas horinhas de desemprego, quando abria sua casa para comensais. Estar com essas duas é, fatalmente, fazer uma incursão ao maravilhoso mundo da cozinha.
Desses ingredientes todos nasceu, faz pouco, “De lá pra cá – histórias para ver, ouvir e comer”, um livro com receitas praticadas por migrantes de oito nacionalidades diferentes, todos moradores da capital paranaense e agora brothers universais de Isa & Lu, a dupla dinâmica. Os recém-chegados se chamam Myria, Isamu, Maria Rosa, Julio, Jacqueline, Zoraida, Tarek, Lynda, Freya e Elizabeth e são oriundos de Benin, Colômbia, Equador, Haiti, Japão, República Democrática do Congo, Síria e Venezuela. Podiam ser o dobro ou o triplo disso, a contar pelos levantamentos iniciais que as pesquisadoras fizeram, em busca de personagens. “Cada um deles renderia uma obra”, garantem, sem esconder a emoção.
De 2019 em diante, quando o projeto de registro de receitas de refugiados e quetais saltou do papel, a ideia só fez crescer, até virar uma celebração. Somaram-se ao grupo o fotógrafo Ricardo Perini; e os cineastas Gustavo Castro, Juliana Sanson e Luciano Coelho, que produziram “De lá para cá, o documentário”. O documentário, à sua maneira, se soma aos infindos e inesquecíveis filmes que usam da gastronomia para falar de amor, amizade, sobrevivência – De “A festa de Babette”, passando por “Como água para chocolate” e “O cheiro da papaia verde”.
A coletânea e o filme estrelados por migrantes estrangeiros são um fato. Recomenda-se aplaudir e assobiar.
Claro – na teoria, a prática é outra, como se diz. As duas amigas hoje dão risadas, mas só elas sabem quantas “voltas ao mundo” tiveram de dar para chegar à arte final do livro. Quando tudo parecia estar na planilha, do jeitinho que elas gostam, a pandemia se encarregou de colocar a proposta em banho-maria. Plano após plano, tudo azedou, exigindo da dupla dotes de contorcionistas. Entre um protocolo sanitário e outro, deram-se conta de algo do qual já suspeitavam: as conversas que promoveram sobre as chamadas “comidas típicas” catapultavam as entrevistadas e entrevistados para cantos escuros da memória. Rolou muita lágrima no leite derramado. Compartilhar a receita do “kibe bi tahine” – da Síria – ou das “hallacas” venezuelanas implicava em falar de guerras, abandono, distância, entre outros banzos que acometem destinatários de ajuda humanitária, apátridas e refugiados. As autoras não podiam atropelar as lembranças de ninguém: o sentimento de ausência – e de injustiça – não é um fast-food que se come com o umbigo encostado no balcão.
Restou a Luciana e a Isadora “navegar” nos pratos preparados pela dezena de convidados – homens e mulheres que em algum momento de suas trajetórias estiveram vinculados ao Centro de Línguas (Celin), da Universidade Federal do Paraná, onde aprenderam a falar português. Foram todos ouvidos. Antes de chegar aos condimentos de “arroz de coco titoté”, por exemplo, foi preciso imaginar junto com a colombiana Maria Rosa Puello os significados de uma festa de família na cinematográfica Cartagena de Las Indias, não por menos um dos cenários da obra de Gabriel García Márquez. O que aparece nas páginas do livro – obra com distribuição gratuita – é o resumo do resumo dos longos serões entre as autoras e suas convidadas. “De lá para cá” nos brinda com receitas que uma hora ou outra vamos experimentar, mas é sobretudo um livro de viagens. Não viagens programadas pela indústria do turismo, mas percursos que passam pelo grande drama do século 21: a diáspora de nações inteiras e a dor que acomete os estrangeiros.
Despretensioso na aparência, o projeto de Isa & Lu acabou por se tornar um exercício de hospitalidade, um laboratório sobre como “viver junto” – com folga, o maior desafio desses tempos estranhos. Sem pompa, as autoras fizeram um manual aplicado de Derrida, Levinas, Boaventura de Souza Santos e quem mais tenha se ocupado desse drama. A dupla está apta a falar de sabores inesperados, a discorrer sobre as relações íntimas entre a “sopa de abóbora” e a festa de Independência do Haiti. Mas também sobre violências que até Deus duvida, atrocidades políticas e econômicas que trouxeram caribenhos, africanos e asiáticos a essas terras frias, muitas vezes sem qualquer chance de retorno. “A gente não puxou a entrevista pelo negativo”, comenta Luciana, sobre a decisão de evitar o efeito “disco riscado”. Os relatos vieram sozinhos, no cortar das cebolas.
“Como aprendeu a cozinhar?
“Com a morte prematura do pai, que obrigou a mãe a trabalhar fora...”, inicia uma das entrevistadas.
Porto Príncipe e Alepo – entre tantas outras cidades – invadem as receitas e se misturam, com trigo, a elas.
“Não tivemos a intenção de produzir um livro de comida. Teve um momento em que a gente conseguiu a receita e a entrevista em vídeo e precisou voltar para perguntar o que a entrevistada fazia quando era criança, como era a casa dela... Todas as histórias têm encantos inacreditáveis. Ouvimos relatos de amor”, ilustra Isadora. O afeto emergiu paralelo ao noticiário das minas terrestres e similares, inferno partilhado pela maioria. Mas a comida não se rende à tragédia. Chama sobretudo para narrativas festivas, ceias que agora se repetem em encontros coletivos, a exemplo dos haitianos e dos sírios, dados à resistência armada de garfo e faca.
“Cozinhar é um jeito de voltar para casa”, resumem as pesquisadoras. Ou de fundar, no tempo exíguo de um almoço ou de um jantar, um país em volta da mesa. Não raro, essas nações que nascem em meio ao vapor das panelas se tropicalizam. Na falta de ingredientes, os pratos são adaptados e ganham uma versão brazuca, feita de sabores possíveis. Foi assim da feijoada à torta Banoffi. Logo encontraremos por aí “arepas à curitibana, ou “fufu com pinhão”. A paz não só é possível, como passa pelo prato.