José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Miguel Bakun, a hora chegada

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
08/12/2019 19:00
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Esta semana, a artista plástica curitibana Eliane
Prolik distribuiu em sua rede de Whats imagens de uma exposição que acontece
nos muros do Colégio Estadual Conselheiro Zacharias – ali no Alto da Glória. As
imagens decalcadas nas paredes homenageiam o escritor Dalton Trevisan, não por
acaso morador da Rua Ubaldino do Amaral, a dez passos da escola, e o pintor
Miguel Bakun – um dia inquilino do bairro vizinho, o Juvevê.
Dalton está na ativa, aos 94 anos, ocupando com
méritos o posto de maior escritor brasileiro vivo, ao lado de José Rubem
Fonseca. Bakun morreu em 1963, há 56 anos portanto, e só agora começa a ser
reconhecido dentre os pintores mais originais que o modernismo produziu no
país. O mercado de arte nacional, súbito, o descobriu. É passível de ser
colocado ao lado de Alfredo Volpi, Segall, Goeldi e Guignard, para citar quatro
nomes luminosos. Pobre de Marré Desci, chegou às artes por caminhos mais ou
menos tortos, à margem das academias e das altas rodas das galerias.
Desconheço detalhes da iniciativa do Colégio Estadual Conselheiro Zacharias, mas sou capaz de presumir o entusiasmo que provocou em Eliane Prolik. Desde o início dos anos 2000, a artista coordena uma força-tarefa em torno do “pintor trágico”, para citar um dos muitos rótulos a ele colados, nem sempre para bem. Além da catalogação das telas (mais da metade das 800 que teria produzido), da identificação de peças esquecidas em pequenas coleções particulares, Eliane provocou a escritura de textos críticos sobre o paranaense, a exemplo dos assinados por Ronaldo Brito, Rodrigo Naves e Artur Freitas. Organizou retrospectivas e, à revelia de sua conhecida discrição, tornou-se uma das vozes autorizadas a falar de Bakun.
Bakun morreu há 56 anos, e só agora começa a ser reconhecido dentre os pintores mais originais que o modernismo produziu no país
À primeira vista, a pequena mostra a céu aberto do
colégio pode ser entendida como uma atividade pedagógica dentre tantas, dessas
que os alunos fazem por força do idealismo dos mestres de Educação Artística.
Mas pode ser mais um sinal de que a obra de Bakun sai da casca e se torna
papa-fina para as massas, como dizia o visionário Oswald de Andrade. Ponto para
ele. E para o pequeno exército de Brancaleone que se lançou nessa empreitada.
Além de Prolik, a quebra de silêncios em torno de
Miguel Bakun, o “gênio suicida”, o “Van Gogh paranaense”, passa pelo homem de
cultura Constantino Viaro – que mantém em destaque no museu dedicado a seu pai,
o pintor Guido Viaro, a tela Homem sem
rumo
, retrato que Guido pintou do amigo Bakun, em 1940; passa pelo soberbo
professor de História da Arte Fernando Bini – que o apresenta a seus alunos por
décadas a perder de vista; pela galerista Eugênia Petriu – que o conheceu de
perto e faz dele as mais tocantes descrições... A lista de timoneiros vai longe.
E causa impressão; afinal, as crônicas em torno do pintor – alimentadas por
mais de cinco décadas – são comumente traduzidas como uma “prova cabal da
maldade curitibana”. O resultado é que a vida apaga a obra, impedindo de vê-lo
como o grande artista que foi.
Os fatos são mais ou menos conhecidos. Seguem sendo contados na surdina, em meio aos cuidados reservados aos suicidas – “que é para não incentivar”. Desde a publicação de Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, em 1774, tem sido assim. Há temor – e algumas evidências – de que à sua simples menção, a palavra “suicídio” provoque repetecos em série – melhor não mexer com isso. Sem falar nos estigmas que rondam aqueles que tiraram a própria vida – outrora, inclusive, privados das exéquias e relegados às margens dos cemitérios. O obscurantismo se rompe aos poucos: nos últimos cinco anos a imprensa tem publicado e ponderado sobre o fenômeno – que cresce e, logo, é um fato noticioso, ainda que permaneça o cuidado em não valorizar as motivações dos suicidas. São uma fonte de dor.
Ocorreu que as supostas razões de Miguel Bakun para
encerrar o expediente viraram um prato cheio – e assim permanecem, superfaturadas
no imaginário local. Em 1962, o pintor teria recebido como prêmio uma “caixinha
de lápis de cor” por sua participação no XIX Salão Paranaense de Belas Artes / III
Salão Curitiba. Em resposta ao desaforo, passa a corda no pescoço.
Recomendo aos leitores que não subestimem a importância
dos salões de arte, à época. Movimentavam a vida cultural da capital paranaense,
criavam cabeças coroadas num estalar de dedos, mexiam com os melhores e os
piores instintos. Daí a conexão imediata que centenas de pessoas viram entre o
prêmio “aviltante” destinado a Bakun pelos organizadores do salão e sua morte
grotesca – em 14 de fevereiro de 1963. O corpo do artista foi encontrado num
barracãozinho desses de guardar trecos, nos fundos da casa em que morava com a
mulher e as enteadas, na Rua Paraguaçu, 26. Tinha 53 anos. Além de marinheiro
reformado, tinha trabalhado como alfaiate e fotógrafo ambulante. Cerzia seus
próprios ternos. É descrito como triste e se descrevia como azarado.
Muitos devem lembrar de uma cena da novela Rainha da Sucata, de Sílvio de Abreu, exibida em 1990, com toda a pompa, para reverter a audiência estrondosa da concorrente Pantanal, de Benedito Ruy Barbosa, na hoje extinta Rede Manchete. Pois é. Maria do Carmo, a personagem de Regina Duarte, era filha de um português que fez dinheiro “catando monturos”, como se dizia dos ambulantes que recolhiam cascos de garrafa, de porta em porta, para revendê-los. Estranha no ninho num colégio de elite de São Paulo, sofre um bullying com “requintes de crueldade”, como se dizia, justo no baile de formatura, quando receberia o prêmio de melhor aluna. Os colegas bem nascidos – incomodados com a inteligência da pobretona infiltrada – fazem recair sobre ela pencas de lixo, brindando-a com gargalhadas dignas dos piores filmes de horror.
Miguel Bakun se tornou o personagem sob medida para uma história pronta, cuja serventia é reduzir todos os problemas do mundo aos maniqueísmos
A cena famosa – repetida volta e meia na trama de
Abreu – é uma citação ao filme Carrie, a
estranha
(1976), de Brian de Palma a partir de romance de Stephen King, estrelado
por Sissy Spacek – com a diferença de que a mocinha humilhada pelos colegas usa
da paranormalidade para atormentar seus desafetos, num Bacurau à americana. Pois essas duas lembranças são para reforçar
que o ocorrido com Bakun ficou para a memória local como um episódio parecido.
Antes de Carrie, a estranha, e de Maria do Carmo, a “rainha da sucata”, houve
em Curitiba um artista que, em vez de receber o primeiro prêmio, num
reconhecimento à sua grandeza, ganha um estojo de lápis de cor, que outro
recado não trazia senão “vai para casa aprender a pintar”. Não tinha cursado a
“Belas”, como se sabia. Avacalhado por um grupo de bem-nascidos sem talento,
invejosos desnaturados, filhos de uma “boa mãe”, ele aceitou o conselho – e se
matou.
As descrições que já ouvi sobre a figura de Miguel
Bakun não me autorizam duvidar que ele fosse mesmo motivo de chacota entre seus
pares. Natural da pequena Marechal Mallet, no Sudeste paranaense, tinha origens
eslavas e rurais. A expressão corporal, o sotaque, as mãos, tudo denunciava sua
origem. O período passado na Marinha pode ter reforçado, digamos, sua
simplicidade. Ao se radicar em Curitiba, almejando ser artista, torna-se o
sujeito estranho, que gravitava em torno de jovens que, se não conheciam Paris,
falavam da Cidade-Luz como se a conhecessem.
O terno-traje-obrigatório, alguns números maior que seu corpo pele e osso, por certo tinha a função de amenizar as diferenças de classe a que se via submetido. Quando entrava numa exposição, visivelmente não pertencia àquele meio. Seu papel: o de ser o cara que ri amarelo e calado na rodinha de amigos. Havia outras agravantes: era religioso fatalista, depressivo, empobrecido e alimentava pequenas lendas – como a de não pisar em formigas ou a de ter atravessado a Baía de Guaratuba a nado, e de paletó e gravata. Enxergava o sobrenatural. Some-se a pintura desconcertante, animista, atormentada, cujo refinamento escapava mesmo à sabedoria dos que frequentavam as bienais de São Paulo.
Em resumo, Miguel Bakun se tornou o personagem sob
medida para uma história pronta, cuja serventia é reduzir todos os problemas do
mundo aos maniqueísmos. Em suas pesquisas, contudo, Prolik encontrou mais de um
indício de que a “paixão e morte” de Miguel Bakun foi construída na base da
distorção, como a maioria das memórias, a rigor. E entendeu que o
disse-me-disse em torno do episódio retardou, em muito, o essencial – captar a
novidade expressa na pintura de Bakun. Brindado com uma história de flagrante
injustiça, ele permaneceu como em vida, um artista à margem, um personagem de
folhetim.
O interessante é que, à revelia do lugar sensível
que Miguel Bakun ocupou no circuito artístico de seu tempo, o roteiro
cinematográfico de sua morte está eivado de equívocos, alimentados por gorda
imaginação novelística. Bakun não podia ganhar o primeiro prêmio porque a obra
que inscreveu no salão estava vendida – o que contrariava as regras do evento. A
tela vencedora tinha de ficar para o museu. Logo, não foi escalpelado e atirado
no serpentário do Passeio Público. A tal caixinha de lápis de cor era de fato
um estojo luxuoso oferecido por um dos patrocinadores, a loja Arno Iwersen, que
muitos leitores tiveram a alegria de frequentar, na Rua Monsenhor Celso.
A relíquia estaria ainda hoje em poder de uma das
filhas de suas enteadas e, de acordo com testemunhos bem azeitados, estava mais
para objeto de desejo que para instrumento de sevícia. O suicídio se deu três
meses após a abertura do salão, tempo em que o artista continuou às voltas com
a classe, sem ressentimentos, pelo menos aparentes. Os relatos sobre a amizade oceânica
que unia Bakun e o italiano Guido Viaro, por exemplo, concorrem com a
contundência das historietas de ruindade explícita erguidas em torno do
ocorrido. Há indícios de serem acréscimos apócrifos, provincianos, enciumados, adulterados
por fofocas que, de tantas vezes contadas, podem ter virado verdade. E nesses
casos – como bem se sabe – nunca mais saberemos qual é a verdade. Que ao lado
das versões possíveis para a tragédia prevaleça a grande arte de Bakun – e esse
momento parece ter chegado.