José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Nossas histórias com os negros. Experimente contá-las
meu interesse pela trajetória dos negros no Paraná. Não, não – essa curiosidade
jornalística não está revestida da viciada relação do branco que salva o negro,
ou coisa que valha. Juro. Estou vacinado e a picada doeu. Mas assim pode
parecer, pois assim o é entre os que não se imunizaram contra esse risco.
com uma ingenuidade por vezes tocante, mas nociva. Repete-se à exaustão no
cinema, na tevê, na imprensa e na literatura, pelo simples motivo que muitos de
nós, brancos, se comportam assim. A mão que afaga é também a que afoga. Sofremos
de uma espécie de síndrome de Green Book,
numa alusão ao filme oscarizado de Peter Farelly, estrelado por Mahershala Ali
e Viggo Mortensen. O personagem de Mahershala é um gigante, mas é o homem comum
– uma espécie de animador de churrascos –, interpretado por Viggo, que o pega
pela mão em meio ao ensandecido racismo da América na década de 1960.
Book,
ainda que um belo filme, me permitam, é só um exemplo de racismo velado. Pensou
em Conduzindo miss Daisy? Pois é –
arranca lágrimas de ternura. Mas a chaleira está fervendo. Sugiro preparar o
estômago para um soco e assistir à Corra!,
de Jordan Peele. Eis o tempo.
da picada? Pois experimente ler Entre o
mundo e eu, o testamento do jornalista norte-americano Ta-Nehisi Coates, a
seu filho adolescente. O livro, pequena joia, explica a um garoto como é
habitar a pele de um negro. Se o livro lhe parecer vindo de uma realidade muito
distante, recomendo Na minha pele, do
ator Lázaro Ramos. Lázaro mostra como é ser o estranho que bate palmas do outro
lado do portão.
Vidas negras importam. E é disso que devemos falar nesse cinzento 2020
racismo à brasileira bem poderia ter se dado pela evidência dos fatos que todos
os dias assaltam o noticiário – os negros estão nas tarefas mais mal remuneradas,
são mais assassinados, evadem mais da escola, chegam menos ao topo das empresas,
morrem mais de coronavírus... Mas foi Floyd quem estourou as bolhas de insatisfação
planetárias – impossível respirar diante de tanta velocidade, desigualdade,
consumismo, com um diabo de coisas que têm no racismo a sua mais grotesca
tradução. Vidas negras importam e é disso que devemos falar nesse cinzento 2020.
Nem de Elcy, a amiga negra de minha irmã Cecília. Ou do paquera negro de minha
irmã Clarice. Nunca mais os vimos, a exemplo da família negra da Vila Cubas.
Por sorte, o chá de sumiço dos negros que passaram pelas nossas vidas não virou
regra. Um fato quebrou a sequência.
Da minha parte, sonho mapear as professoras negras que desafiaram a branquitude ao ocupar o principal posto da sala de aula
do jornalismo, veio a pergunta sobre como aquele grupo teria chegado à classe
média numa cidade – assim dizem – segregada como Curitiba, a branca de neve. As
respostas correm como um rio. A principal é que a história de “Curitiba, a
negra” precisa ser contada. Os apagamentos dessa história em nossas biografias
são apagamentos coletivos. Não é exagero: basta somar os vizinhos, os colegas
de escola, os empregados, os afilhados dos quais não sabemos mais. Os anônimos
e os não, como o negro Zaca, são protagonistas de uma aventura humana comovente
– uma prova cabal de que as minorias, os oprimidos, deram uma solene ova para
os babacas.
sobre os negros no Paraná, precisamente em Curitiba, avançam. São uma florada
no meio do deserto. Põem para correr uma série de crenças bobinhas que nem vale
a pena repetir. No mais, só para provocar, reforço que a capital paranaense tem
uma santa negra, escrava forra, de nome Maria Bueno. Teve sociedades de negros
anteriores ao 13 de Maio de 1888 – o que mostra que a coisa por aqui não era
uma novelinha de época das seis, repleta de negros cabisbaixos, agradecidos à
generosidade dos sinhozinhos libertários. Ponha-se na lista Enedina Marques – a
primeira engenheira negra do país, e cuja biografia vira a cabeça de quem quer
que se aproxime. Some-se o negro Joaquim da Costa Turíbio, um popular da cidade
no final do século 19, tocador de matraca em procissões, alfabetizado, tema de
estudos do árabe-brazuca Gehad Hajar.
mapear as professoras negras que desafiaram a branquitude ao ocupar o principal
posto da sala de aula. As negras amamentaram, lavaram a roupa suja, mas também
ensinaram o bê-á-bá. Essas mulheres furaram a bolha. A começar por dona Maria
Nicolas – nome de escola na Vila Isabel –, passando por dona Olga dos Santos,
no Santa Quitéria; e a já citada Teresinha Nascimento, do tradicionalíssimo
Colégio Estadual Lysímaco Ferreira da Costa – a que comprava revistas aos
domingos, na banquinha do seu Fernandes, meu pai. Sim – está debaixo do nosso
nariz.