José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Nossas histórias com os negros. Experimente contá-las

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
14/06/2020 12:00
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Os mais próximos sabem do
meu interesse pela trajetória dos negros no Paraná. Não, não – essa curiosidade
jornalística não está revestida da viciada relação do branco que salva o negro,
ou coisa que valha. Juro. Estou vacinado e a picada doeu. Mas assim pode
parecer, pois assim o é entre os que não se imunizaram contra esse risco.
O modelo redentor é praticado
com uma ingenuidade por vezes tocante, mas nociva. Repete-se à exaustão no
cinema, na tevê, na imprensa e na literatura, pelo simples motivo que muitos de
nós, brancos, se comportam assim. A mão que afaga é também a que afoga. Sofremos
de uma espécie de síndrome de Green Book,
numa alusão ao filme oscarizado de Peter Farelly, estrelado por Mahershala Ali
e Viggo Mortensen. O personagem de Mahershala é um gigante, mas é o homem comum
– uma espécie de animador de churrascos –, interpretado por Viggo, que o pega
pela mão em meio ao ensandecido racismo da América na década de 1960.
Green
Book
,
ainda que um belo filme, me permitam, é só um exemplo de racismo velado. Pensou
em Conduzindo miss Daisy? Pois é –
arranca lágrimas de ternura. Mas a chaleira está fervendo. Sugiro preparar o
estômago para um soco e assistir à Corra!,
de Jordan Peele. Eis o tempo.
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Pesquisar os negros, a negritude, o racismo – nas mais diversas escalas de conhecimento – exige estar atento a questões legítimas que emergem nesse oceano não pacífico: a apropriação cultural, o “lugar de fala”, a interseccionalidade. Essa, aliás, exige atravessar todo e qualquer assunto pelo ponto de vista das mulheres, dos pobres, dos LGBTIs, dos refugiados, dos negros... É a arte política de cindir discursos ao meio. Veste-nos do avesso. Dá um trabalho danado, mas o reverso dessa moeda é a alienação – uma brincadeira que perdeu a graça. O século 21 escancara uma verdade inconveniente, a vida dos outros. Tem George Clooney. Mas tem George Floyd.
Acha essa conversa o fim
da picada? Pois experimente ler Entre o
mundo e eu
, o testamento do jornalista norte-americano Ta-Nehisi Coates, a
seu filho adolescente. O livro, pequena joia, explica a um garoto como é
habitar a pele de um negro. Se o livro lhe parecer vindo de uma realidade muito
distante, recomendo Na minha pele, do
ator Lázaro Ramos. Lázaro mostra como é ser o estranho que bate palmas do outro
lado do portão.
Essa bibliografia é só o começo para quem está disposto a se aventurar pelo que a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz chama de o problema que o Brasil teima em não enfrentar – a Escravidão e o tortuoso risco de bordado que formou. Lilia, a propósito, biografou o escritor negro Lima Barreto (Triste visionário), obra que se soma a sua suma sobre o assunto. É autora de meia dúzia de livros essenciais para... concordar com a magna tese de que não acertamos as contas com o período escravocrata. Eu não discutiria com uma das mais brilhantes intérpretes do país – nem podemos nos dar a esse luxo: a realidade esmurra nossa porta.
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Interessar-se por aquele Brasil “que se julga a terra da democracia racial” não é propriamente uma virtude, um sinal de bondade, um ato de misericórdia digno de um buquê de lírios na cerimônia do Juízo Final. Trata-se de um imperativo moral. Para surpresa, o gatilho dessa prosa foi dado a milhares de quilômetros daqui, em Minneapolis, EUA, num 25 de maio, com a morte do segurança negro George Floyd, hoje um cidadão universal. A frase que disse antes de morrer – “eu não consigo respirar” – é pandêmica e se torna o mantra de uma geração, a exemplo do “é proibido proibir” ou “a imaginação no poder”, dois gritos sessentistas um dia pichados nos muros de Paris e de Pirapora.
Vidas negras importam. E é disso que devemos falar nesse cinzento 2020
O ponto de ebulição do
racismo à brasileira bem poderia ter se dado pela evidência dos fatos que todos
os dias assaltam o noticiário – os negros estão nas tarefas mais mal remuneradas,
são mais assassinados, evadem mais da escola, chegam menos ao topo das empresas,
morrem mais de coronavírus... Mas foi Floyd quem estourou as bolhas de insatisfação
planetárias – impossível respirar diante de tanta velocidade, desigualdade,
consumismo, com um diabo de coisas que têm no racismo a sua mais grotesca
tradução. Vidas negras importam e é disso que devemos falar nesse cinzento 2020.
O que fazer – atados a máscaras, reféns da quarentena? Um exercício possível é radiografar nossa relação com os negros – para saber quem somos neste tabuleiro. Exige, claro, abdicar sair daquela conversinha mole sobre os amigos negros que a gente tem – como se esses bons ares da esfera privada pudessem servir de emplastro para um problema grotescamente maior. É tarefa que nos deixa em carne viva.
Já contei aqui, em outra crônica, que na minha primeira infância, passada na Vila Cubas, bairro Novo Mundo, tínhamos com vizinhos uma família de negros. Nossa vida era modesta na ruazinha de baixo da “João Stenzowski” – mas foi a casa deles que me deu, pela primeira vez, a noção da desigualdade, o que só fui entender anos mais tarde. Lembro o fogão a lenha – comum à época. Mas o chão era feito com tijolos que se moviam quando a gente pisava, sobras de alguma construção. Um dia eles se foram dali – assim como nós.
Depois dos vizinhos negros veio a Joana da Silva – baiana, balconista divertida na loja de meu pai, na Água Verde. É hoje uma evangélica fervorosa, que recebe músicas de Nosso Senhor. Guarda-as de cor, mais de 400, ainda que não saiba ler nem escrever. Um fenômeno dos céus e da neuropsiquiatria. Com ela, vieram para o nosso convívio suas irmãs, ambas falecidas, Vitalina e Josina – essa, mãe da Vânia, de quem sou um padrinho ausente e darei contas a Deus. Nunca falamos sobre ser mulher negra em CWB.
No colégio – cursado nos anos tristes do regime militar – lembro de um único colega de classe negro: Osni. Veio à minha festa de 12 anos e tenho até hoje uma foto junto com ele. Me senti orgulhoso da sua presença, como um troféu do meu bom mocismo. Entendi o que aquele encontro significou ao ler, décadas depois, o livro de memórias Meus desacontecimentos, da jornalista Eliane Brum, obra que recomendo. Eliane se descreve, humanitária, ainda guria, andando de mãos dadas com um índio pelas ruas de Ijuí, no Rio Grande do Sul. Depois narra o incômodo que sentiu, quando o índio voltou à cidade, não mais como evento, mas como parte da vida como ela é.
Não sei o destino de Osni.
Nem de Elcy, a amiga negra de minha irmã Cecília. Ou do paquera negro de minha
irmã Clarice. Nunca mais os vimos, a exemplo da família negra da Vila Cubas.
Por sorte, o chá de sumiço dos negros que passaram pelas nossas vidas não virou
regra. Um fato quebrou a sequência.
Meus pais tinham uma loja de jornais e revistas, aqui na Baixada Atleticana. Abria de segunda a segunda, sem folga. Aos domingos, víamos entrar o ruidoso negro Zaca, ao lado de Clóvis Nascimento e de sua mulher, a linda e elegante professora Terezinha Nascimento. Todos negros da classe média. Era uma cena de filme vê-los chegar. Compravam Burda, Manchete, Cruzeiro, Fatos & Fotos... uma pilha de leituras. Próximo a eles, havia o nosso vizinho da rua de baixo, Darcy Rosa, o negro Rosa – sempre de Rayban, boina, terno e gravata, mais de uma vez personagem dessa coluna. A Água Verde deve um logradouro em homenagem a seu Rosa – que fique registrado.
Da minha parte, sonho mapear as professoras negras que desafiaram a branquitude ao ocupar o principal posto da sala de aula
Anos depois, no exercício
do jornalismo, veio a pergunta sobre como aquele grupo teria chegado à classe
média numa cidade – assim dizem – segregada como Curitiba, a branca de neve. As
respostas correm como um rio. A principal é que a história de “Curitiba, a
negra” precisa ser contada. Os apagamentos dessa história em nossas biografias
são apagamentos coletivos. Não é exagero: basta somar os vizinhos, os colegas
de escola, os empregados, os afilhados dos quais não sabemos mais. Os anônimos
e os não, como o negro Zaca, são protagonistas de uma aventura humana comovente
– uma prova cabal de que as minorias, os oprimidos, deram uma solene ova para
os babacas.
A propósito, os estudos
sobre os negros no Paraná, precisamente em Curitiba, avançam. São uma florada
no meio do deserto. Põem para correr uma série de crenças bobinhas que nem vale
a pena repetir. No mais, só para provocar, reforço que a capital paranaense tem
uma santa negra, escrava forra, de nome Maria Bueno. Teve sociedades de negros
anteriores ao 13 de Maio de 1888 – o que mostra que a coisa por aqui não era
uma novelinha de época das seis, repleta de negros cabisbaixos, agradecidos à
generosidade dos sinhozinhos libertários. Ponha-se na lista Enedina Marques – a
primeira engenheira negra do país, e cuja biografia vira a cabeça de quem quer
que se aproxime. Some-se o negro Joaquim da Costa Turíbio, um popular da cidade
no final do século 19, tocador de matraca em procissões, alfabetizado, tema de
estudos do árabe-brazuca Gehad Hajar.
De minha parte, sonho
mapear as professoras negras que desafiaram a branquitude ao ocupar o principal
posto da sala de aula. As negras amamentaram, lavaram a roupa suja, mas também
ensinaram o bê-á-bá. Essas mulheres furaram a bolha. A começar por dona Maria
Nicolas – nome de escola na Vila Isabel –, passando por dona Olga dos Santos,
no Santa Quitéria; e a já citada Teresinha Nascimento, do tradicionalíssimo
Colégio Estadual Lysímaco Ferreira da Costa – a que comprava revistas aos
domingos, na banquinha do seu Fernandes, meu pai. Sim – está debaixo do nosso
nariz.
Experimente. Deixe a história respirar.

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