Redação

Notícias do mundo de lá

Redação
30/06/2019 19:00
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Lembro bem. Tempos
atrás, citei neste espaço um livro que me causou impressão, lido quanto eu
tinha 20 e poucos anos. Chama-se O choque
do futuro
e o autor é Alvin Toffler (1928-2016) – jornalista, psicólogo
social, antropólogo, sociólogo, mas sobretudo um “futurista”, palavra que, pelo
menos em mim, provoca a frieza da lata. Prefiro uma dama de peito arfante,
esmagada pelos espartilhos, descendo escadas num filme de época, do que naves
platinadas sobrevoando cidades destruídas, povoadas por replicantes – entre
outras assombrações da ficção científica. Futuristas, como Aldous Huxley e
George Orwell, não cabem no imaginário de meninos nascidos na Vila Cubas – ou
pelo menos assim parece a um deles.
Mas Toffler, quando chegou, chegou sem pedir licença. Em 1990, uma colega pediu uma força, resumindo para ela “um livro chato”. Era um trabalho de faculdade. Em vez de mentir que estava com dor de cabeça, topei. A primeira impressão foi a de estar em companhia de um best-seller duvidoso, do naipe de Como fazer amigos e influenciar pessoas, de Dale Carnegie (autor que fez a cabeça do Donald Trump); O poder do pensamento positivo, de Norman Vincent Peale (excelente remédio para passar em Matemática); ou Eram os deuses astronautas?, de Erich Von Däniken, para citar alguns títulos que ultrapassaram a Bíblia e O velho e o mar – de Ernest Hemingway – em vendagens e popularidade. Só que não.
Tem aquela frase bem bacana do poeta e crítico W.H. Auden: “Alguns livros são injustamente esquecidos. Nenhum livro é injustamente lembrado”. É o caso de O choque do futuro na minha biografia de leitor (a propósito, se ainda não fez a sua, recomendo – é uma terapia). Juro que não ganhei um puto tostão pelo resumo – só um abraço da amiga, pelo 10 que tirou. Me envaideceu, dizendo coisas que não vou contar. Repeti a proeza de ser o leitor de outrem, mas num livro diferente, com um colega de trabalho. Foi o fim de carreira ghost: ele me disse que usou o resumo em quatro disciplinas diferentes ao longo da faculdade, sendo sempre agraciado com boas notas. Sei que darei contas a Deus, mas pedirei um desconto no “caso Toffler”. Muito me valeu.
Ao longo dos anos,
segui lembrando o que o autor norte-americano dizia sobre como seriam as
cidades, as pessoas e as coisas assim que a era da cibernética se instalasse.
Até então, essa conversa de cibernética não passava de uma música do padre
Zezinho, cantada a plenos pulmões nos meus sábados católicos. Mas o tempo foi
mostrando que o impacto do futuro seria mesmo uma aventura, e não apenas uma
cena triste de Blade Runner. Hoje,
instalado o futuro e suas avarias em série, vejo que Toffler tinha razão em
tudo – ou quase. E só não digo mais sobre a clarividência deste intelectual porque
da última vez que o citei, uma leitora me soltou os cachorros, protestando
minha ignorância sobre o seu autor preferido. Para muitos, é um futurólogo de
estimação.
O fato é que semana passada arrotei o companheiro Alvin novamente. Explico. Estive em Porto Alegre, num evento da área da comunicação, e aproveitei para ir ao município de Esteio, na região metropolitana. Foi um revival. Morei ali, num seminário, no longínquo ano de 1986. Brinco que naquele tempo os dinossauros ainda esticavam o pescoço para comer frutas na copa das árvores. Tão espantoso quanto é dizer – e agora de verdade – que as galinhas andavam soltas nas ruas esteienses, numa boa, sem repressão da Vigilância Sanitária. E que quando íamos à capital, andávamos 40 minutos a pé, “pela faixa”, como dizem os gaúchos, da estação de trem até chegar ao colégio. Ninguém se queixava. Esteio era uma típica periferia da metrópole e o seminário ficava na periferia da periferia. Como consolo pelas pernadas, havia a linda entrada do seminário, ladeada de eucaliptos; a vista do Morro Sapucaia e os cafés da tarde com cuca e chimia de banana – não raro feitas inclusive com a casca, mas isso é assunto para outro dia.
Há algo do passado que a tecnologia, o capital e a ganância não podem roubar, pois mora num escondido
Se foi bom? Foi ótimo. Com exceção, claro, da sinceridade extrema dos gaúchos, um acinte aos despistes e simulacros a que são dados os curitibanos. Somos praticamente mineiros na arte de conspirar e falar pelas costas. A facilidade quase imoral com que os sulistas chamam a gente, na cara, de “moscão”, “boca aberta” e “songa-monga” bem arrancou umas lágrimas desse pobre. Depois passou – aliviado, inclusive, por não ter pego o sotaque da gauchada. Graça alcançada. Prefiro nossa fala cheia de estocadas, com poucos “esses” e muitos “ês”.  Ah, sim, lembrei de tudo isso – rindo sozinho, bem bobo – enquanto o motorista do Uber subiu a Avenida Claret, passou o Colégio Coração de Maria – onde lecionei –, cruzou o La Salle e me deixou no endereço – um endereço que só existia na memória. Era o que Toffler antecipava que ia acontecer em seu profético O choque do futuro: tudo ficaria na lembrança.
Aos fatos. O Seminário Claretiano de Esteio, no Rio Grande do Sul, pegou fogo em 13 de agosto de 2005. Funcionou de 1943 a 1990 – quase meio século. Sem uso, encontrou a sua tragédia, causada talvez por uma fogueirinha acesa lá dentro, numa noite de minuanos, por alguém sem-teto ou muito doido; ou as duas opções. A parte que sofreu sinistro era (injustamente) a mais interessante – a do prédio antigo, que ficava à frente da chácara onde estava instalado o convento. O edifício de trás sobreviveu às chamas. É hoje órgão público e não passa de um caixote quadrado e sem encantos.
Víamos o prédio principal à medida que os eucaliptos iam ficando para trás, como se estivéssemos num filme do James Ivory. A construção era sóbria, quase monacal, toda num tom verde musgo que lhe parecia natural, como se nenhuma tinta tivesse tingido as paredes. As janelas – venezianas severas, pintadas num outro tom de verde, meio sessentista, meio polaco da nhanha, equívoco que lhe caía bem. Havia um nicho para a Virgem à frente dessa paisagem, ornado com chão de caquinhos, à moda dos trincadis de Gaudí. Tratava-se de mais que um lugar bonito – o seminário de Esteio tinha personalidade. Não estranha que tantos lhe façam odes apaixonadas. Clique na rede para saber.
Em miúdos – tudo o que descrevo é realidade virtual. A entrada de eucaliptos não existe mais. Escafedeu-se. A mata em volta virou um condomínio da classe média. Procurei um cinamomo esplendoroso que havia no escampado, sem sucesso. Deve ter virado lenha. O Morro Sapucaia permanece a postos – ainda bem. Da arquitetura mais antiga, sobrou a casca. Não se pode entrar nas ruínas, que estão tomadas pelo mato grosso. Um ou outro ladrilho está lá, para contar história.
Toffler antecipou que no futuro veríamos a arquitetura, o território derreterem diante dos nossos olhos
Pelo buraco das
janelas, do lado de fora, só me restou tentar adivinhar onde era o auditório, o
refeitório, a parte reservada às freiras que ali atuavam, para colaborar na
formação dos futuros padres. No meu tempo, viviam na casa as irmãs Eny, Ana e
Helena, a seu modo – figuraças. Lembrei de vários dos 39 meninos que lá
estudavam naquele ano – em especial um que me infernizava as ideias, atrás do
qual corri, com uma foice na mão, num surto de fúria taurina. Não houve óbito. Vejam
que atitude marxista – influência da Teologia da Libertação.
Toffler usava
expressões como “o conceito de transitoriedade”, “economia da impermanência”,
“a extinção da geografia”, “diversidade” – tudo isso em 1970, quando seu livro
foi editado. Era com essas palavras que avisava o que íamos encontrar pela
frente. Depois dele, autores como Yi-Fu-Tuan exploraram conceitos semelhantes
e, até onde sei, encontraram mais eco e respeito. Talvez porque o futurólogo
tinha sido jornalista e o que dizia soasse, digamos, pejorativo. E porque seus
ideários parecessem a meio palmo entre os pares de sua época – algo como Carl
Rogers (de Tornar-se pessoa) num
extremo respeitável, e Dale Carnegie em outro, desprezível.
Não descobrimos Toffler
a seu tempo, mas o fato é que ele antecipou que no futuro veríamos a
arquitetura, o território derreterem diante dos nossos olhos. Os espaços da
memória seriam roubados, restando aquela máxima de que o passado seria salvo
pela distorção das nossas lembranças, sempre e sempre discursos disléxicos
sobre o que aconteceu. Somos arquivos, livros ambulantes, mal escritos, pedindo
para serem lidos, como disse outro contemporâneo desse bamba, por ironia o
“passadista” Umberto Eco.
Não chega a ser de todo triste. Lugares como o Seminário Claretiano de Esteio existem nas recordações de quem sentou naquele claustro, para suportar uma tarde escaldante, fazer uma prece, arder em desejos inconfessáveis. Talvez um ex-esteiense leia esse texto e sinta uma imagem de antigamente acordar do sono em que estava e espreguiçar. Há algo do passado que a tecnologia, o capital e a ganância não podem roubar, pois mora num escondido. O futuro mal imagina em que ano a gente está. Eis a graça.
(Em memória do padre André Boanerges Carbonera, que amava o “seminário de Esteio”.)