Redação

O prédio da minha escola era…

Redação
20/10/2019 19:00
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Numa das passagens mais
inspiradas do livro de ensaios Menos que
um
, o dissidente e Nobel de Literatura Joseph Brodsky conta como era viver
numa cidade soviética. Há passagens de humor involuntário a respeito das
moradias coletivas, com banheiros e cozinhas em comum, nas quais imperava a
rotina de ouvir os peidos e sentir o chulé dos vizinhos. Mas nada se compara à
descrição sobre as paisagens torturantes – nas quais o prédio do hospital, da
escola e da delegacia da polícia tinham a mesma arquitetura. Ao estar em um
deles, a impressão era a de estar em outro. Diz tudo.
Li Brodsky há uma pá de anos, por recomendação do escritor Miguel Sanches Neto. E penso que devo aos dois ter começado a prestar mais atenção aos prédios das escolas – e ao que está impresso nos seus corredores e escadarias. Virou mania. Dia desses, ao ouvir o burburinho em torno da falta de alunos em colégios tradicionais da capital paranaense – e de que muitos teriam fechamento anunciado –, dei-me conta de que colecionava um catálogo de visitas, quase sempre como repórter, a instituições de ensino da província, as centenárias e as nem tanto.
Posso assegurar a delícia que é cruzar os portões do Xavier da Silva ou do D. Pedro II, sem falar no óbvio, o Instituto de Educação. Some-se o Grupo Escolar Cruz Machado, na “Meia Pracinha” do Batel, futura sede do Museu da Escola. Nessas ocasiões, os botões da memória são acionados sem pudores. As colunas, mezaninos, vitrais, tudo parece ter como música de fundo Meus tempos de criança, de Ataulfo Alves (“que saudades da professorinha”, “onde andará Mariazinha” e coisa e tal). Botar o nariz numa fresta de porta qualquer é alucinógeno, pois permite enxergar uma cena fantasma qualquer, digna de figurar na peça Aurora da minha vida, um clássico da dramaturgia de Naum Alves de Souza.
Como nós, brasileiros, podíamos querer que os alunos valorizassem a escola se as escolas costumam ser os lugares mais medonhos do bairro?
O contato com edifícios que davam à escola o status de “lugar importante” tem um efeito reboque – a consciência da banalidade flagrante de muitas construções escolares. Acertou quem lembrou de imediato dos puxadinhos cobertos com Eternit, que reservam um calor infernal para quem tenta aprender as três operações. Do avariado piso de cimento. Dos vãos tristes, com pinta de presídio. Das construções quadradas que lembram campos de concentração ou supermercado de vila. Certa vez, numa conversa com o padre redentorista irlandês Patrick McGillicuddy – idealizador de uma belíssima escola para jovens empobrecidos, em Campina Grande do Sul, na Região Metropolitana de Curitiba –, ouvi algo de uma franqueza flagrante: como nós, brasileiros, podíamos querer que os alunos valorizassem a escola se as escolas costumam ser os lugares mais medonhos do bairro? Simples assim.
É evidente que a arquitetura não faz a escola. Mas a fala do padre tem um fundo de verdade. A penúria espartana e imoral de muitos dos nossos colégios “diz” que aquele espaço é “só pro gasto”, que “precisa de esmolas”, e por aí vai, numa perpetuação do modelo escola de subsistência, surgido no tempo das reduções jesuíticas, o que bem podia ser uma página virada da nossa história. Para educar bastava erguer uma espécie de reformatório, no qual a aplicação da correção moral se sobrepunha ao ambiente propício à troca do conhecimento. Que ágora, que nada. Mas melhor não bater nessa tecla viciada. Prefiro citar pelo menos quatro colégios sem nenhum charme arquitetônico, mas que foram redimidos pela ação dos professores: a Escola Municipal Ayrton Senna, no Cajuru, que transformou um estacionamento em espaço criativo para os alunos; a Escola Municipal Itacelina Bittencourt, no Guaíra – melhor dos mundos para crianças dos bairros Lindoia e Parolin, à revelia da vizinhança, que não lhe dá bola; o veterano Papa João XXIII, no Portão, imbatível, mesmo sendo uma sequência de gambiarras construtivas; e o Colégio Estadual João Gueno, no empoeirado bairro São Dimas de Colombo, uma usina de leitura, escrita e criatividade convertido em modelo para quem luta para virar a mesa. Nesses lugares, graças aos deuses, a arquitetura assinada por algum engenheiro sonolento e entediado é superada pela balbúrdia chamada educação.
Há de se registrar, é claro, que a arquitetura escolar anda mal das pernas, não é de hoje. Tanto o estado quanto o município adotaram construções-padrão, repetidas aqui e acolá, como se todos os lugares fossem iguais. Por ironia, esse liberalismo aplicado – que economiza usando as mesmas plantas – lembra, e muito, o cenário descrito por Joseph Brodsky. A unidade de saúde, o terminal de ônibus, o Cras e a escola, todos com a mesma cara de repartição, pura repetição de truques manjados. Um Lego faria melhor. Permitam-me uma analogia.
Tanto o estado quanto o município adotaram construções-padrão, repetidas aqui e acolá, como se todos os lugares fossem iguais
O falecido Cláudio
Pastro – expert em arte sacra, artista plástico e idealizador de igrejas –
dizia que o clero, cada vez mais capenga em termos de estética, economizava
botando azulejo de banheiro no piso dos templos. Ao ajoelhar para rezar, o fiel
olhava para o chão e ficava com vontade de fazer xixi. Efeito semelhante
provoca a pasteurizada arquitetura escolar. Para ela, por exemplo, não há
cultura local, nem geografia. A bucólica Colônia Marcelino, em São José dos
Pinhais, tem uma escola cuspida e escarrada à da populosa Vila Monteiro Lobato,
no Tatuquara, como se o vento fizesse as mesmas curvas nos dois lugares. Pausa,
de novo, para a voz de Ataulfo Alves. Que saudade.
A propósito das
analogias urinárias, aconteceu comigo. Ao visitar o “João Turin” da minha
infância, em dias de votação, percebi a colocação de uma meia parede de
azulejos de quinta categoria nas salas de aula. Ficaram parecidas com um WC.
Devem dar comichão na piazada durante uma aula de Português – o que redunda num
atentado à gramática.
Há exemplos contrários e notáveis, registre-se. Um deles? O Colégio Estadual Professora Maria Aguiar Teixeira, no Capão da Imbuia. Pelejei para descobrir o nome do arquiteto, sem sorte. O projeto é da década de 1960. Respeita e tira proveito do declive do terreno; o piso das salas é de madeira – sob medida paras as temperaturas polares da capital. Os espaços de ensino são acolhedores, há clareiras para a entrada de luz e uma linda azulejaria amarela e branca na fachada. Nem a ação inclemente das gangues – que insistem em disparar seus sprays contra o “Maria” – rouba a imponência daquele endereço. Na lata – devia ser regra chamar arquitetos para projetar escolas. O contrário disso se chama barbárie.
A penúria espartana e imoral de muitos dos nossos colégios “diz” que aquele espaço é “só pro gasto”
Seria uma heresia não citar a Escola Municipal Vila Nossa Senhora da Luz, situada na comunidade que lhe dá nome, primeira Cohab paranaense e terceira do país. Tem suas origens em 1966. E carrega uma lenda – a de que sua planta veio traficada da África, daí ser um local tão gelado. Pensado para refrescar a turminha, em meio aos humores do Saara, teria provocado efeito triplicado na fria CWB. O arquiteto Alfred Willer desmente. O “Grupão”, como é chamado, foi projetado por Willer em parceria com outro bamba, Roberto Gandolfi. E é uma joia da arquitetura escolar brasileira, mesmo com a barbeiragem climática. Há seis anos, documentaristas tchecos filmaram autor e obra, uma proeza.
Em tempo, esse texto tinha a intenção de tratar da Escola Estadual Ângelo Trevisan, no bairro Cascatinha, ali nas barbas de Santa Felicidade. É das últimas do governo a ainda manter o ensino básico. Funciona numa grande casa de madeira, erguida na década de 1950. É vizinha de uma capelinha, também de madeira, a São Judas Tadeu. Um dos caminhos para chegar ali exige passar uma ponte. Depois é só cruzar o portãozinho, admirar-se com o jardim e conhecer uma experiência educacional de embasbacar. Não vi vidro quebrado na “Ângelo”. Livros ficavam espalhados em cantoneiras, por todo o espaço. Era comum flagrar alunos mais velhos tomando a tabuada dos mais novos. Tudo no melhor do estilo “o meio é a mensagem”. A construção das antigas – à moda Curitiba dos tempos de vovó-criancinha – colaborava no clima acolhedor, que tão bem faz à aprendizagem.
Soube que a “Ângelo” vai mudar de sede, por motivos de logística, qualidade e tudo mais. Tenho curiosidade em saber qual será o destino da casa – tomara não seja colocada abaixo. Nem a escola se mude para uma paisagem sem sentido. Seria pouco mais do que um crime.
Coluna dedicada à arquiteta e historiadora Elizabeth Amorim de Castro, autora de A arquitetura das escolas públicas do Paraná: 1853-1955, entre outros. Por não nos deixar esquecer o que as paredes dos colégios confessam.