José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
O teorema da casa
José Carlos Fernandes
16/08/2020 13:30
Nem uma, nem duas pessoas dizem – entredentes e ao pé do ouvido – que o isolamento social lhes fez um bem danado. Como toda confissão, exige esforço. Logo às primeiras semanas da pandemia, acharam que iam morrer de tédio e tristeza, ao não passarem a mão na maçaneta do portão e ganhar a rua, como sempre faziam. Mas o tempo se encarregou de mostrar que estavam erradas, que precisavam de fato parar, e que a Covid-19, à revelia dos estragos que causa e de suas mais de 100 mil vítimas no Brasil, serviu para cada um rever a vida como um filme – com perdão ao clichê.
Esse antes e depois do coronavírus vai mudar a relação de muita gente com a casa. É ela, afinal, o cenário dos, por ora, seis primeiros meses do resto de nossas vidas. Acompanho os sinais pela imprensa, nas reportagens mais comportamentais, aquelas que em meio aos escombros têm a missão de reportar a banalidade cotidiana. O home office da firma, as aulas remotas das crianças e tudo mais exigiram que móveis fossem afastados, que peças do apartamento ganhassem outras funções. “Fora” cantinho alemão, agora ali há um escritório de improviso. Novas regras de convivência se tornaram obrigatórias no código de posturas familiar.
Mesmo com o cobertor mais curto nas finanças, paredes ganharam novas cores e um verdadeiro balé com os vasos de plantas se realizou. Iluminação e ventilação – detalhes da produção antes voltados a garantir noites agradáveis – se tornaram prioridade. A crise econômica, que bateu forte na porta de tantos setores, esboçou um sorriso para tudo o que envolve pequenas reformas. E se não aconteceram ainda, entraram para o planejamento. Assim que possível, as marretas hão de cantar um hino e derrubar aquela velha azulejaria da cozinha. Discorda? Dê um Google e se surpreenda com os resultados.
Esse antes e depois do coronavírus vai mudar a relação de muita gente com a casa. É ela, afinal, o cenário dos, por ora, seis primeiros meses do resto de nossas vidas
Não vai durar muito tempo e chegarão ao mercado editorial livros sobre as casas pós-pandemia. A arquitetura familiar nunca mais será a mesma. E não é a primeira vez, nem a última, que acontecimentos externos, de grande monta, afetam o bem-viver. A afirmação é o óbvio ululante, mas costuma passar despercebida. Foi assim para a própria história, sociologia e arquitetura, entre outras áreas do conhecimento, que demoraram a atinar para as revoluções da esfera doméstica. Em miúdos, a Terra começa a girar mais rápido com a soma das pequenas alterações de sentido, dadas nos quartos, nas salas e nos quintais. A pandemia instaurou outras Constituições e formas de governo não nos Centros Cívicos, mas nos nossos CEPs – e agora é que são elas.
Os estudos da vida privada – espécie de cachaça de qualidade, que uma vez provada não será abandonada – contribuem sobremaneira para a percepção de que páginas da história são escritas no cotidiano. A propósito da casa – e como ela se modificou por força da chegada de novas tecnologias ou de novos ciclos econômicos –, vale conhecer a pesquisa de Bill Bryson, um norte-americano que vive no Reino Unido e cuja definição profissional é tarefa das mais difíceis. Bryson é cronista, escritor, pesquisador, mas sobretudo uma espécie de viajante curioso, o que está expresso na sua obra mais conhecida, Breve história de quase tudo, um robusto manual de ciência em linguagem palatável que vendeu mais de 2 milhões de exemplares no início dos anos 2000. Na esteira do best-seller, o autor lançou, em 2011, outro quitute – Em casa, uma breve história da vida doméstica.
Não custa nada sonhar que Bill – um historiador diletante – escreva um dia sobre as casas pandêmicas. Se o fizer, por certo há de nos entreter ao fazer dos reles tapetes desinfetantes, agora onipresentes nas portas, algo tão fascinante quanto o sótão de sua casa vitoriana em Norfolk – onde vive com a mulher e os quatro filhos. Tudo indica que Em casa, o livro, nasceu de uma maratona do inquilino ao telhado, para sanar uma goteira. Decidiu ali entender o fascínio britânico pelos sobradinhos e nos brindou com um tratado. Nessa prosa, cada detalhe faz a diferença – explora, por exemplo, a reviravolta trazida pelos lampiões de gás. Proporcionaram o jogo de cartas em família. E a leitura silenciosa de um livro, no segundo andar, longe da balbúrdia das crianças. Isso, no fim do século 19. Bueno, as pessoas começaram a pensar como puderam viver tanto tempo sem o consolo de um lampião.
O livro de Bryson – é bom lembrar – não foi o primeiro a revelar que as casas são um vasto continente a ser explorado, mesmo que tenham 70 metros quadrados e uma goteira misteriosa. No início dos anos 1990, a coleção de cinco volumes de História da vida privada, organizada por Philipe Ariès, Georges Duby, Michelle Perrot e outros cardeais, alforriou os leitores de tediosos relatos sobre golpes de Estado e batalhas campestres. No lugar, os autores trataram de explorar – em tempos idos – como os casais tinham intimidade – ou não tinham – em quartos minúsculos, nos quais havia filhos dormindo até na gaveta das cômodas. Dos exóticos hábitos de higiene pessoal dos franceses – pelo menos do ponto de vista dos brasileiros e norte-americanos. Do significado de ter carne para o jantar, depois da penúria do pós-Guerra. Por aí toca a banda.
Foi só depois da leitura de um desses volumes que entendi o orgulho dos pais de família ao chegarem em casa, com um quilo de carne moída enrolado num jornal velho. Ainda é assim nas periferias. E por que meu pai – que sofreu as agruras da Segunda Guerra na Europa – erguia um espeto de churrasco de domingo com a alegria de Bellini levantando a taça Jules Rimet. A gente nunca mais olha o álbum de retratos da família do mesmo jeito depois de um encontro, ainda que breve, com Ariès, Duby e sua trupe.
Ainda que menos conhecido, é um barato o trabalho do britânico de origem polonesa Witold Rybczynski, autor de Casa – pequena história de uma ideia, lançado no Brasil em 1996. A diferença de Rybczynski e os outros é que ele não é um historiador, mas um arquiteto. E por mais que lhe interesse o espelho das relações humanas, ocupa-se de outra dimensão do morar – o conforto. Em última análise, as delícias burguesas formam o cenário no qual encenamos nosso próprio papel. É um palco, mas também um laboratório de eletricidade, com tomadas aqui e ali, instaladas para facilitar tudo, garantindo que haja tempo para o desejo. O autor é uma espécie de Bachelard – o filósofo da poética dos espaços privados –, mas aplicado, pragmático feito um pedreiro. Não causa espanto que seja polonês, pois casas eslavas costumam ser uma cápsula concentrada de tudo o que é bom para o corpo e para a alma, o que inclui sonhos de nata.
Resta saber se os defeitos ou as qualidades das nossas casas serão potencializados com a nova ordem doméstica, pós-pandemia. Tomara vença a virtude
Caso alguém se anime em dar uma pausa nas invasões bárbaras e no declínio do Império Romano para se dedicar ao significado de corredores e despensas, recomendo, ainda – para preencher as horas vadias –, dois livros que são um desacato: O século do conforto, de Joan DeJean; e Desejo de status, de Alain de Botton. O primeiro é uma incursão divertida e até desaforada pela chegada aos lares não dos liquidificadores, mas dos sofás, poltronas, mesas de centro e demais fricotes dos quais nem o mais espartano dos proletários abre mão. O segundo, ainda que não trate do espaço doméstico, mas das vaidades, mostra o lugar da casa no fenômeno do esnobismo. Mostrá-la aos parentes e amigos permanece um ritual odioso.
A propósito, pra não falar só de flores, difícil ignorar em meio a essa toada A casa e a rua, do sociólogo e antropólogo Roberto DaMatta. É um livro curto, essencial, revelador sobre as oposições entre o espaço público e o privado que rondam a cabeça do brasileiro. O texto é hábil em colocar caraminholas e a nos permitir associações. Toda vez que vejo uma garrafinha de plástico ou um papel de sorvete ser catapultado pela janela de um automóvel, não deixo de pensar nesse livro. E em como para nós o carro é uma extensão do espaço privado. Visitar toda e qualquer casa também ganha outro sabor depois de DaMatta – cada sala é um enigma a ser decifrado. Resta saber se os defeitos ou as qualidades das nossas casas serão potencializados com a nova ordem doméstica, pós-pandemia. Tomara vença a virtude – a hospitalidade da mesa posta para quem chega. Andamos precisando de um abraço, entre o abajur da Loja do Pedro e a samambaia comprada no Mercado Municipal.