A estilista curitibana que inspirou os filhos na vida, na arte e na profissão
Marina Mori
11/05/2018 12:00
Fotos: Anna Gabriela Amorim / Gazeta do Povo | Ana Gabriella Amorim
A estilista curitibana Ione Kulig tem uma tese sobre como filhos são preparados para a vida: no caso de sua experiência como mãe, a franqueza sempre foi regra — o que evitou sofrimentos futuros. “Sempre fui muito dura com os meus filhos para prepará-los para a vida. Se você não os prepara, eles sofrem mais tarde. Não sei se isso atrapalhou um pouco, mas o mundo é duro. Você chora para conseguir as coisas”, diz Ione Kulig em tom de reflexão. Um ouvinte atento bem poderia perceber uma pontada de arrependimento em sua voz.
Ela umedece os lábios preenchidos e pintados de batom cor de rosa, ajeita os óculos – a armação retangular em acetato preto reforça sua sobriedade – e continua. Ione analisa sua relação de mãe e sócia com os três filhos e volta à década de 1970, quando criou com o marido a Nadine, fábrica de tricôs que já faz parte da história da cidade.
“Nunca faltou nada para eles. Mas uma coisa que fiz questão de mostrar foi o valor do trabalho”. A tática funcionou, mesmo que através de linhas tortas e postura rígida durante toda a vida. Cada um de seus rebentos, nascidos e criados entre teares, rolos de fio e máquinas de corte na fábrica da família, começou na labuta logo cedo. E seguiu os passos da mãe no mundo da moda.
O primogênito Jefferson Kulig, hoje com 49 anos, foi o primeiro. Aos 15, já tinha responsabilidades de gente grande na empresa. Não demorou muito para que seu espírito criativo marcasse o nascimento de uma nova era à casa de madeira do Campo Comprido. “As coisas que ele fazia eram excepcionais. Sem nunca estudar, ele já chegou misturando seda com malha, couro e tricô. Era uma coisa”, relembra Ione.
Mas o sucesso do estilista, que chegou a desfilar dez vezes na São Paulo Fashion Week, nunca foi celebrado pela mãe da forma como o filho esperava. “Até hoje, é muito difícil ela fazer um elogio. A gente sempre trabalhou e conviveu na base da competição”, revela Jefferson.
“O trabalho, para ela, é um hábito. Como escovar os dentes”, diz Karina Kulig, a filha do meio. A estilista chegou à Nadine dois anos depois do irmão mais velho. Em seguida, veio Michel. Mesmo não tendo se tornado um designer de moda, o caçula trabalha até hoje nos negócios da família.
A regra da mãe era clara: mesmo com um quadro de 40 funcionários, os três precisavam conhecer todas as etapas do processo. Do corte do tecido ao funcionamento da remalhadeira.“Ela dizia que quanto mais a pessoa sabe, mais ela vale. E deveríamos aprender com humildade”, conta a estilista.
À primeira vista, tudo em sua postura é carregado de sobriedade. Alta e magra, percorre a passos firmes os corredores da empresa, sua segunda casa há quatro décadas. Em tons de branco, preto e cinza, seu escritório – o cômodo mais moderno do imóvel de madeira – é um retrato de sua personalidade.
Colecionadora
Atrás da ampla mesa de mármore e de uma cadeira imponente de couro, centenas de bonecas compõem a decoração. Nenhuma é igual à outra – cada modelo, seja de pano, cerâmica ou madeira, é preso à parede por pregos e elásticos.
“São de várias partes do mundo. Aquela ali é da Alemanha, a outra é do Japão, essa é da África”, diz Ione sorrindo enquanto aponta uma a uma de sua coleção. Apesar de um tanto intimidador, é fácil se acostumar ao cenário depois de alguns minutos.
A empresária senta-se em frente a mim e diz que não costuma dar entrevistas. “Sempre querem saber minha idade”, explica. “E quantos anos a senhora tem?”, pergunto.
Ione ri e balança a cabeça em sinal de negação, como quem já fez isso dezenas de vezes ao longo dos últimos anos.
“Por que as pessoas se preocupam tanto com números? Parece que, depois de um tempo, você precisa se aposentar e parar tudo. Eu acho isso uma sacanagem. Estou em uma idade produtiva e sou útil à sociedade. Não importa qual é minha idade”.
Seguimos conversa e, sobre o assunto, o máximo que consigo extrair é seu signo. “Sagitariana. Nasci com a mala nas mãos”, brinca.
O começo
Aos poucos, ela começa a contar a história da marca que revolucionou o conceito de tricô em Curitiba. Seu tom de voz é sereno e, o olhar, distante. Como quem relembra cenas felizes de um filme há muito não visto. Ione traça uma linha do tempo desde quando se casou com Roberto Kulig, em 1968, e os dois investiram na tecelagem como profissão.
“Ele tinha um armazém de secos e molhados, o que era muito comum na época. Eu disse que nós faríamos algo diferente”, rememora. Fizeram. Iniciaram uma produção de jaquetas e tricôs tradicionais masculinos mas, em pouco tempo, Ione arriscou desenhar algumas peças inéditas.
“Criamos um tricô único. Não existia em Curitiba e vendeu muito”. Sem nunca ter estudado moda, a empresária desenvolveu casacos estilo alfaiataria, vestidos e conjuntinhos que em pouco tempo conquistariam o Brasil e a Europa.
Quem tem boca vai à Roma… ou se infiltra na Paris Fashion Week
Era década de 1980 e a produção da Nadine ia de vento em popa, com mais de 14 mil peças “tiradas” por mês. Além de abastecer grandes lojas de departamento no Paraná, como as antigas Mesbla e Prosdócimo, a família Kulig decidiu que era hora de expandir ainda mais os negócios.
Abriram um showroom em um dos pontos mais efervescentes da cena fashion de São Paulo. Ali, na esquina da Oscar Freire com a Augusta, Ione, Jefferson e Karina, cada qual com suas peças e seu estilo, venderam para todo o Brasil. Fecharam negócio até com lojas na França e na Espanha.
Apesar do sucesso, sentiam que faltava algo. Qualquer inspiração que não chegasse tão atrasada.”Era muito difícil achar informação naquele tempo. Por causa disso, eu e Jefferson viajávamos até duas vezes por ano para a Europa”, relembra Ione.
Ambiciosos, nenhum dos dois atravessava o oceano para ficar atrás das vitrines das maisons francesas. Queriam mais. Por que não ver os desfiles de Chanel, Yohji Yamamoto – seu preferido até hoje – e Dior ao vivo e em cores?
O empecilho era um só: participar da semana de moda de Paris era praticamente impossível. “Até um editor da Vogue tinha dificuldade de entrar. A gente fazia malabarismos para poder assistir e trazer coisa nova, porque as notícias chegavam depois de cinco meses”, conta Jefferson. Uma cena em especial ficou marcada em sua mente.
“Lembro de ter visto o Alexandre Hercovitch sentado no chão em frente à Sorbonne porque não tinha conseguido um convite. Imagine nós, de Curitiba! Como conseguiríamos entrar?”
Ione Kulig não é o tipo de pessoa que aceita um “não” tão fácil. “Quando você vai num lugar desses, tem que estar muito bem arrumado para não dar brecha. Você tem que confiar em você e entrar sem medo. E nós entrávamos”, revela.
Mudanças
Hoje, os tempos são outros. O ritmo de produção da fábrica está em marcha lenta; das dezenas de costureiras que trabalhavam na confecção, restaram menos de cinco. Ione culpa a crise e até pensa em mudar de área. Planos não faltam.
O mais recente tem a ver com caridade – ela e o marido estão transformando uma fazenda em São Luiz do Purunã em espaço educacional para crianças. Em paralelo, confecciona roupas de frio para doação. “Falta mais gentileza no mundo. As pessoas estão muito egoístas”, justifica. Amor de mãe tem dessas. Às vezes é duro mas, que ele existe, existe.