“Transe” da corrida transforma cada passada em uma história
Amanda Milléo
06/05/2016 21:00
O curitibano Raphael Bonatto: "às vezes não sei se o dia está quente, frio, com sol ou chuva, é uma espécie de hipnose". Fotos: Acervo Pessoal
Quem corre conhece as fases pelas quais os praticantes passam durante os treinos. Os primeiros quilômetros são difíceis, focados em superar as dores e em pensamentos de incentivo. Depois que a corrida se torna um processo mecânico das pernas, e o esforço exigido não é tão intenso, o corredor atinge uma espécie de “transe”, onde tudo em volta se perde e as sensações são similares à meditação.
Esse momento é parecido a estar dopado ou embriagado, conforme explica Daniel Boullosa, coordenador do programa de pós-graduação em Educação Física da Universidade Católica de Brasília (UCB). “Tradicionalmente, pensava-se que esse fenômeno estava mais associado à liberação de endorfinas, mas pesquisas recentes relacionam à liberação de moléculas que são parecidas a aquelas liberadas quando se faz uso de drogas como a maconha. Quem pratica exercícios de longa duração, mas de moderada intensidade, tem mais chances de ter essa experiência”, explica.
Sintonizar em outra frequência, porém, não retira a atenção do momento. Durante os treinos, o corredor e professor de educação física Fábio Moralles Alonso pode não lembrar por onde passou, como chegou naquele ponto da rua, mas sabe que fez as escolhas conscientemente – tanto que consegue organizar a própria agenda durante todo o período de treino. “É um momento que você não pensa em nada, como se você se desligasse, e de repente começasse a organizar tudo. Eu costumo pensar em tarefas, no trabalho, no que eu preciso fazer em casa e resolvo problemas, tudo durante o treino”, diz.
Até chegar a esse momento vão de 40 minutos a uma hora e meia de treino, segundo Fábio, pois é o tempo que o cérebro precisa para se preparar. “Fisiologicamente, você oxigena mais o corpo, e também o cérebro, quando corre, o que facilita outros processos metabólicos. Mas é importante que seja uma intensidade média, não alta, para que você não foque apenas no esforço”, afirma Alonso, que recentemente correu mais de milquilômetros para seu projeto chamado KM Social.
“Os benefícios psicológicos ou neurais da corrida como um exercício de endurance vão além da sensação de prazer. Há evidências de que esses exercícios se associam a fatores de crescimento do cérebro, fazendo com que melhorem a capacidade cognitiva ou o controle do estresse dos praticantes. Para a corrida se assemelhar à meditação, é preciso que seja um exercício com atenção plena, mas ainda faltam estudos que comparem as duas práticas dessa forma”, afirma Boullosa.
Mais prática é necessário
Quem está começando na corrida pode não ter essa experiência tão cedo. No início, o praticante tem muitas preocupações, como as dores e o esforço que precisa fazer para poder correr os primeiros quilômetros, e pode não conseguir se distrair e entrar em uma zona mais confortável. “É a mesma coisa com quem está aprendendo a dirigir. Nas primeiras vezes, você calcula que precisa colocar a chave, pisar na embreagem, colocar a marcha e acelerar. Depois, é automático, e assim é na corrida também”, exemplifica Alonso.
Se você se torna um ultramaratonista, no entanto, a sensação tende a voltar a do começo da prática. O curitibano Raphael Bonatto é um ultramaratonista e, entre seus maiores desafios, correu 27 maratonas em 27 dias seguidos por 27 capitais diferentes. Para ele, se perder em pensamentos durante os treinos e provas ainda é comum, mas sempre tem um pé na realidade. “Às vezes não sei se o dia está quente, frio, com sol ou chuva, é uma espécie de hipnose. Mas, quando estou em uma competição, com distâncias acima de 200 km, eu vou focando nas minhas mini metas. De tanto em tanto tempo eu preciso comer, preciso me hidratar, preciso calcular e até mesmo nesses momentos posso me distrair com outros pensamentos”, conta Raphael.
Ana Giovanelli, ultramaratonista de montanha ou ultra trail, também confirma essa volta ao começo, quando a pessoa se perde nos pensamentos durante a corrida, mas com um pé na realidade. “Como eu treino de manhã, organizo todo o meu dia durante o treino. Eu uso a corrida para me conectar. Como eu treino bastante fora de Curitiba, porque sou corredora de montanha, também consigo focar na natureza, perceber melhor o meu corpo”, acrescenta a atleta.