Uma notificação no celular me deu bom dia, era o meu melhor amigo Henrique, com quem vinha há dias tomando inúmeros cafés, fazendo muitas reuniões e fazendo jus ao recurso de envio e recebimento de mensagem. A primeira mensagem me dizia: "Bom dia, meu irmão, como você está?", seguida por uma sequência de outras mensagens relatando sua felicidade e ansiedade sobre um importante projeto e sonho que estávamos realizando. Eu, muito pé no chão, consenti sua euforia e pedi calma, disse que estávamos quase lá e que seria lindo, isso antes de ele me dar bronca por economizar manifestação de emoção. Era um projeto bonito, envolvendo música e muita expressão artística, estávamos empolgados. Dois dias se passaram e, devido ao acelerar das rotinas, deixei passar duas manhãs sem mensagem, não percebi, achei estranho, decidi ligar.
"E aí, meu mano, cadê você, me abandonou?", como de costume dei um ar de cobrança, tirando onda, fazendo aquela cena de quase abandono que a gente sempre faz com quem a gente gosta, esperando uma justificativa boba de retorno e iniciando a conversa depois de algumas risadas como quebra gelo.
— Estou na UPA, sendo transferido para um hospital maior, acho que tive um infarto, não quis te preocupar! — disse.
Aquela voz que me acordava entusiasmada e que eu fazia questão de desacelerar, me recebia agora de forma apreensiva, ofegante e com interrogativas. Os dias seguiram com os protocolos, exames, trocas de mensagens de afeto, amizade e diretrizes para nosso projeto que estava perto.
Uma inquietude estimulou minha não tão presente ansiedade, senti algo diferente, sem muita explicação, mas estava ali, me tirando o foco de afazeres simples. Troquei mensagem com minha dupla de palhaço:
— E aí Frutuoso, topa um desafio comigo?
— Claro Du, vamos lá!
Apenas para ele – e só para ele –, compartilhei sobre meu incômodo e o motivo, disse que precisava fazer uma visita importante e que só teria segurança com ele. Alinhei com o hospital, que já era nosso parceiro, para o dia seguinte. Figurinos e acessórios checados e lá fomos nós. Antes de chegar até o quarto planejado, passamos por diversos outros, como uma visita de rotina, quase perdemos a hora em um posto de enfermagem ao lado, disputando a atenção de um pequeno grupo de enfermeiras, nos fazendo de difíceis e julgando seus argumentos sobre nossa chegada, fazendo aquela cena melodramática típica do Rosenvelt e Frutuoso.
Enfim chegamos! Ufa.
Era um quarto com leitos compartilhados. Logo na entrada encontramos uma família grande, era horário de visita, o mais esperado para quem está hospitalizado.
Começamos um jogo de improviso musical, com diversos trocadilhos envolvendo a todos, e fomos nos aproximando de Henrique, que nos recebeu com um sorriso surpreso, brando e meio bobo de nos ver ali, afinal, sendo amigos há um bom tempo, ainda não havia me visto como palhaço, ainda mais na condição de paciente. Por coincidência, dividia naquele momento o quarto com um senhor também músico, de chapéu tradicional, aqueles da velha guarda, que nos observava ao fundo, com ar de curiosidade, mas ali, na dele, jeito de gente experiente e que tudo observa. No ritmo. Henrique exclama:
— Esse aí é músico hein, e dos bons!
Rápido que somos, engatamos na playlist de "Demônios da Garoa", mas bateu na trave. Com um sorriso conectado ao tema, sr. Álvaro balançou a cabeça negativamente, sinalizando o erro na escolha da música, dizendo que o gosto dele era outro.
Dessa vez não íamos falhar!
Saquei do repertório e em ritmo de pagodinho "Ozéias de Freitas" e recomeçamos:
— Eram cem ovelhas, juntas no aprisco, eram cem ovelhas que o pastor cuidou. Porém, numa tarde, ao contá-las todas, lhe faltava uma, lhe faltava uma e triste chorou. As noventa e nove…
Enquanto o sr. Álvaro fluía embalado pelo clássico resgatado por nós, Henrique em tom alegre-provocativo e pitadas de deboche, dispara: "As noventa e oito, as noventa e sete, as noventa e seis, as noventa e cinco…", dando início a uma catarse de contagens, nos influenciando a induzir todos os participantes daqueles dois ambientes a cantarem com a gente, decrescendo a contagem da música até o número zero.
Acontece que nessa música, a estrofe permanece apenas no número noventa e nove e a piada interna de quem conhece a música imperou e nos colocou em um trilho difícil de sair. Foram momentos importantes, onde finalizamos aquela sequência, explicitando o cansaço e esgotamento da sequência, mas felizes pela deixa e pela proposta dada por ele. Findando, fomos nos desprendendo dos fios de conexão com os demais e, aos poucos, fomos direcionando nosso contato de forma mais individualizada a ele. Sabendo que no dia anterior havia sido seu aniversário, convidamos todos a cantarem parabéns; eu, conhecido também por andar com um rolo de papel higiênico pendurado no pescoço, o saudei com uma coroa de papel, acompanhado por manto, colar, pulseira e pedaços de papéis em “efeito confete”, que foram se espalhando ao seu redor. Uma celebração digna de um rei em seu trono, pois para mim, além de amigo, também era uma referência na música, um arranjador, compositor, guitarrista e produtor musical incrível.
Missão cumprida!
Havia se passado 15 dias após nosso encontro, e exatamente uma semana desde a última mensagem, logo após uma delicada cirurgia. Depois de tanto tempo convivendo em ambiente hospitalar, a gente passa a reconhecer alguns sinais e aquele silêncio confirmava o motivo daquelas inquietações de 15 dias antes.
Naquela manhã, meu melhor amigo partiu.
Entre o pesado luto, a missão de concluir o projeto e o sonho que aconteceria uma semana depois, entre a amizade e a dor, entre o palhaço, aquele “eu” no espelho, ainda sem chances de sentir para ser suporte ao que se instalou naqueles dias.
Após um pouco mais de uma semana, senti! Corpo e emocional sentiram, dando lugar a um temporal que me fez chover, transbordar e silenciar.
Até onde vai o encontro do palhaço? Quem tem o controle?
Quem tem o poder de estabelecer um limite entre o jogo cênico, o imaginário, o fantástico, a verdade e a realidade?
Como se protege o palhaço em sua vulnerabilidade do sentir, do importar-se, da própria compaixão que, cedo ou tarde, o irá afogar em iminente ruína?
Ora, mas a técnica não há de estabelecer limite entre o que se deixa e o que se leva? Se sim, onde habita a humanidade de ser o que se pretende ser, como palhaço dentro desse contexto?
No meu caso, em anos de mais variados momentos de euforia e resiliência, me encontrei na situação mais difícil, a qual já previa, e por essa previsão projetei tal encontro, mesmo com os riscos emocionais ali imprimidos nas evidências. Mas e quando não se prevê, como os óbitos súbitos durante uma intervenção, uma parada respiratória ou cardíaca, ou um procedimento de emergência que nos esbarra no corredor enquanto uma maca passa voando? Ou quando, em confusão mental, um paciente encontra a lucidez com seus argumentos, nos atinge em cheio? E quando um profissional da saúde, em seu ápice de esgotamento, tira a própria vida em exercício de sua função?
Esse episódio, que se soma a tantos outros, me traz responsabilidade e uma contagem regressiva constante sobre a urgência dos encontros e da qualidade desses encontros, do tempo que não necessariamente mira a velocidade, mas a pausa. Pausa pra perceber e ouvir, estar e sentir, respirar… Pausa pra desligar, pra ser, chover, regar e não deixar secar, pairar no ar, pra retroceder e até pra parar de contar. Buscar entender do quê é feita a dor, o quê o riso esconde, onde ele se esconde e o quê ele é capaz de transformar.
Leia uma reflexão do livro "Encontros, risos e outras molduras: um breve retrato da arte da palhaçaria em hospitais": Quem cuida do palhaço?
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