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Covidina

Nariz Solidário
Nariz Solidário
11/06/2024 16:04
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Por Luana Bastos, Psicóloga Hospitalar
Em meados de 2017, foi a primeira vez que eu estava dentro de um hospital como profissional. Dentro do ambiente hospitalar, nós vemos muitas tragédias, e é o psicólogo que se encarrega da árdua tarefa de sustentar e aliviar – dentro do possível – o sofrimento do paciente e de seus familiares e, em alguns momentos, da equipe também.
No início do ano de 2020, tivemos acesso às primeiras notícias de uma doença que se alastrava rapidamente e, meses depois, tivemos relatos dos primeiros casos no Brasil. Uma doença que era desconhe- cida para a ciência e sua repercussão em cada organismo ainda estava sendo estudada.
Com o aumento rápido dos casos, muitos hospitais assumiram “hospitais de campanha”, locais improvisados, com o mínimo de estru- tura para receber pacientes e tentar que estes voltassem para sua família. Famílias essas que não tinham mais contato com seu ente que- rido a partir do momento que este cruzasse a porta adentro do hospi- tal. Mas esse não é mais um relato da tragédia, dor e sofrimento vivido durante a pandemia da covid-19; é uma história sobre o riso.
Este era o cenário: caos, sofrimento, preocupação, inúmeros sen- timentos ruins dentro de um hospital de campanha no meio de uma pandemia que não tinha data para acabar e muito, mas MUITO traba- lho. A sensação era que os funcionários poderiam entrar em colapso a qualquer momento e a psicologia trabalhando a todo o vapor.
Em uma das muitas semanas que se seguiram, fui chamada na sala da coordenação para ser informada que estava sendo encarrega- da de auxiliar um grupo de palhaçaria que faria visita aos funcionários semanalmente. Confesso que meu primeiro pensamento secreto foi: “Mas com tanto trabalho, em que momento vou fazer isso?”. Mas aceitei a preciosa missão. Na mesma semana, estava em minha sala um mane- quim customizado, com roupas desconexas e um tablet. Este manequim ficava estacionado perto da porta, e todos que entravam na sala nos primeiros dias tomavam um susto.
Em um segundo momento, conheci a equipe responsável por essa ideia genial e programamos como fariam as visitas. Ao apresentar essa manequim à equipe, carinhosamente apelidaram-na de COVIDINA*!
A partir desse momento, Covidina passou a fazer parte da equi- pe. Nas primeiras visitas, as equipes, de modo geral, demonstravam-se resistentes, com aquele mesmo pensamento de trabalho, traba- lho, trabalho, “não posso parar” e, com o passar do tempo, a equipe foi abraçando a Covidina – literalmente. Criavam músicas para apresentar durante a visita, gravavam, tiravam fotos e riam, riam muito. Em algu- mas semanas, fizemos a “rádio nariz”, e os corredores eram inundados por músicas cantadas e piadas feitas com os colaboradores.
Recordo-me do dia que uma das colaboradoras encontrava-se cabisbaixa, preocupada com o cenário; ela era uma das responsáveis pela enfermagem, e em sua atuação, pintava cílios em seu óculos de proteção tentando dar um toque de si. Durante uma visita, cruzamos com ela pelos corredores, e o semblante que estava claramente tris- te mudou. Primeiro, para espanto pela imagem do manequim, e em seguida para a alegria; o riso veio. Também lembro de uma paciente, a Dona Joana, que não gostava muito de conversar, estava ansiosa e preocupada, sempre rejeitava as visitas da psicologia, mas que recebeu a Covidina de braços abertos e, após uma conversa, para muitos desconexa, a paciente riu, agradeceu e pediu para que vol- tassem, pois a visita “alegrou o seu dia”.
As quartas-feiras eram o dia mais aguardado da semana, e eu posso dizer em primeira mão que me diverti muito com as visitas da equipe. Era como se fosse uma luz no meio de tanta escuridão, olhando e assumindo a fragilidade de que profissionais da saúde também preci- sam ser olhados e cuidados e quanto esse pensamento já se perdeu de uma forma tão intensa que não passa pela mente de nenhum de nós.
Não era apenas um momento de palhaçada, era um momento de olhar, de cuidado, de entrar em contato com a humanidade que ainda existia no mundo, nos mostrando que ela está aí, é só ajustar o olhar e de ser visto como pessoa e não apenas como “heróis”, como muitos chamavam.
A visita do Nariz passou a tocar a cada um por meio do riso. Sabemos por alguns autores que o riso transforma. Biologicamente, ele libera altos níveis de hormônios que trazem sensação de bem-estar não temos como controlar o futuro.
A vida pode parecer longa, mas ela é muito curta para ser des- perdiçada com momentos de raiva e de mau humor. Se tem uma coisa que posso dizer, sobrevivendo à pandemia na companhia da Covidina e do Nariz é: Ria! Ria até a barriga doer, aproveite os momentos e não se esqueça de procurar o humor mesmo nos momentos difíceis.
Obrigada, Covidina
*Durante a Pandemia o Nariz Solidário criou um manequim adaptado com rodinha e tablet no lugar da cabeça, proporcionando visitas remotas ao vivo, para profissionais da saúde e pacientes em Hospitais de Campanha. O projeto recebeu o nome de Covidina em Hospital Santa casa e Kamilo em Hospital Universitário, ambos hospitais atendidos pela associação. A ideia do manequim surgiu entre o Diretor da Associação Eduardo Roosevelt em conjunto com a Assistente Social Valéria Azevedo, na época coordenadora do voluntariado do Hospi- tal do Idoso Zilda Arns".
Leia mais uma história do livro "Encontros, risos e outras molduras: um breve retrato da arte da palhaçaria em hospitais": Contagem regressiva.