Reflexões à parte

Quem cuida do palhaço?

Nariz Solidário
Nariz Solidário
11/06/2024 16:55
Thumbnail
Por Nadja Moraes - Psicanalista e Palhaça
E quem cuida do palhaço?
E quem cuida do palhaço?
Quem se descobre no caminho da palhaçaria, seja no circo ou em outras vertentes como o hospital, definitivamente deseja encarar seus medos.
Talvez ainda não saiba disso, mas é inevitável.
O palhaço e todo o processo que envolve seu aprendizado exigem que se lide com seus próprios medos. A visão altruísta que temos do palhaço humanitário, ou palhaço de hospital, é somente uma de suas inúmeras camadas.
Há um universo de coisas acontecendo por trás do nariz, por trás daquele que veste o nariz.
A cada encontro há entrega, jogo e luz. Também há, ainda que (ao menos um pouco) liberto, um ser humano querendo acertar, por trás dessa persona que tudo pode, que erra, que falha e ri disso tudo.
Por trás do nariz ainda há o aprendiz. Aquele que julga suas pró- prias escolhas e que, a cada interação, se analisa e explora ao máximo sua verdade.
Qual é a nossa verdade?
Para ser palhaço não precisa de nariz vermelho. Precisa de verda- de. Em uma sociedade na qual estamos sob constante pressão para caber, adequar-se e acertar, até mesmo o palhaço passa por um auto- julgamento.
Há o medo de não ser bom. O medo de não ser verdadeiro e, quan- do se é, o medo de encarar a verdade, de bancar a verdade e olhar por trás dela.
Não há nada de raso por trás da figura do palhaço.
No palhaço, existe sempre alguém que busca. Busca uma conexão e o momento perfeito, busca estar vivo e atento a cada segundo.
Haja energia e motivação para ser palhaço!
Quando se busca a verdade que opera por trás de todas as coisas – e, nesse contexto, definimos “verdade” como reações absolutamente sinceras, honestas, puras –, nos deparamos facilmente com o medo latente de não sermos amados. Afinal, ser capaz de agradar e, enquan- to isso, permanecer-se verdadeiro, são feitos difíceis de se conseguir, pois não andam de mãos dadas. Buscar a nossa reação e o sentimento mais verdadeiro e utilizar isso da forma mais bonita e saudável possível não é algo para o que somos treinados. Ou somos, quando estudamos e nos aprimoramos para sermos palhaços.
Cada interação é como o globo da morte, o trapézio, ou estar dian- te do atirador de facas. A presença é fundamental. A atenção. A moti- vação e o foco.
O risco? Ah, o risco também é grande! Não vai ser físico, mas é emocional. A importância do cuidado com o outro da forma mais pura e honesta imaginável, do cuidado com o outro com qualidade e energia.
O cuidado com o outro sem esquecer de si.
E quem cuida do palhaço?
Para ser palhaço em ambiente de saúde e saúde mental, não pode querer ser cuidado. Ser amado acima de tudo.
Às vezes, a melhor coisa que você poderá fazer por alguém é res- peitar seu espaço, o seu não.
Às vezes, o momento mais mágico é cheio de silêncio, sem teste- munhas e sem aplausos.
E quem cuida do palhaço?
Um grupo organizado, com empatia e abertura para o diálogo, é essencial. A possibilidade de ter acesso a acompanhamento tera- pêutico individual e em grupo também.
Mas nada substitui ou se compara ao cuidado mais precioso. A melhor pessoa para cuidar do palhaço é o ser atrás da máscara, atrás do famoso nariz vermelho.
Para trabalhar com o material humano e suas complexidades, ainda mais em um momento de tamanha vulnerabilidade, é importan- te ser uma pessoa que saiba de si. Alguém que conhece seus medos e fragilidades, suas carências.
Para lidar com o “não” do outro e ser ignorado algumas vezes, para driblar a tensão de momentos inesperados e delicados com humor, há de se saber muito de si. Domínio e controle próprios são difíceis até para devotos à vida monástica, mas, assim como o monge, um palhaço tam- bém precisa estar sempre atento e presente, sem negar suas emoções, mas aprendendo a lidar com elas.
Não se pode levar os acontecimentos para o lado pessoal, nem se alterar com as variabilidades do ambiente. Um palhaço deve aprender a ser senhor de si mesmo, ainda que esse “si” seja também carregado de medos e contradições. O ser, aquele por trás do palhaço, deve olhar para tudo isso e, ainda que sem um completo entendimento, acolher, escutar e ser gentil consigo mesmo.
Assim como um monge, o palhaço habita o aqui e o agora.
O ser por trás do nariz vermelho precisa, antes de tudo, estar pre- sente para si mesmo e para suas necessidades e urgências. Olhar o outro com verdade e permitir ser visto requer uma capacidade inata de amar, mas olhar com verdade para si mesmo e abraçar tudo o que se é, exige um amor gigantesco para si próprio.
Um amor que acredito ser muito mais difícil e desafiador.
Até mesmo porque, quando se olha para si, não se enxerga somente beleza. Costumamos ser mais gentis com o outro do que com a gente mesmo. Mas o palhaço, antes de se conectar com o outro, deve se conectar consigo.
Deve respirar.
Deve ouvir o outro e a si mesmo.
Deve aceitar que não se acerta sempre, mesmo quando se busca o erro.
Deve comer muito arroz com feijão (figurativa e literalmente), pois não é apenas mágica a energia que se usa o tempo todo para se estar atento, presente, vivo e aberto.
O ser por trás do palhaço deve cuidar de si com o mesmo zelo e apreço com o qual quer abraçar o mundo.
Afinal, só damos o que temos e, se queremos ser uma ferramenta de transformação social, devemos transformar e cuidar, antes de tudo, de nós mesmos.