Encontros

Um belo banquete

Nariz Solidário
Nariz Solidário
10/06/2024 17:45
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Por Palhaço Rosenvelt (Eduardo Roosevelt), Hospital Infantil
Avançamos com passos cautelosos e atentos, em um corredor com baixa luminosidade, conhecido por nós por pregar peças e surpresas. Veio ao nosso encontro uma das enfermeiras, olhou fundo em nossos olhos, ansiosa e emotiva, visivelmente alterada com nossa chegada, e foi logo dizendo:
— Meninos, me ajudem, ela não quer comer, não sei o que faço. Já não come há um bom tempo… trouxe sorvete, suco, gelatina e mesmo assim ela não quer.
Nos relatou que a garotinha estava com medo de se alimentar, devido a uma recente cirurgia na garganta.
Olhei para o meu parceiro, palhaço Caculé, e coloquei a mão na barriga sinalizando que aquela enfermeira tinha me despertado uma imensa fome. Fome essa que me fez desejar os copos plásticos ao lado do bebedouro no corredor e logo comecei a mastigar o primeiro deles, mas obviamente sem o paladar daquele banquete anunciado há pouco.
— Mas que desaforo, Caculé! Se ela não quer, nós queremos. — exclamei.
Entramos no quarto, sem pedir mesmo, porque o momento pedia uma intromissão. Com o copo ainda dentro da boca e, de boca cheia, supliquei a menina por comida. Inclusive, aquilo tudo realmente havia me dado fome. Ela olhava atenta, com os olhos arregalados e observantes.
Ao lado estavam seus familiares rindo daquele palhaço maluco com copos plásticos na boca, mastigando e “gralhando” por comida. Permaneci com o copo na boca, mas ainda com fome.
De repente, recebi um cutucão do Caculé, que foi rápido em dedurar a saída da enfermeira e chamar minha atenção para o banquete deixado em cima do pequeno móvel, bem atrás de nós.
— Não acredito, Caculé! Eu comendo plástico e esse banquete todinho, bem abaixo do nosso nariz! Não posso acreditar.
— Não, Rosenvelt! Essas comidas você não pode comer, são todas da Mel e ela vai brigar se você comer — Caculé buscou sem sucesso justificar e defender o território.
— Vai brigar nada, Caculé, eu tô com fome.
— Não, Rosenvelt! — disse novamente e firmemente o Caculé, posicionando-se como uma enorme fortaleza em defesa daquele banquete real.
Repliquei:
— Não! É meu, tudo meu!
Assim, insistia e me jogava contra aquela fortaleza, tentando transpor tal barreira em busca de deliciar-me com aquele banquete.
Por vezes, senti meus pés flutuarem com a tamanha intensidade da minha busca, impedida em todas as tentativas pelos braços e ombros gigantes do Caculé, atuando em defesa dos interesses da princesa. Um grito nos interrompeu e, acompanhado de um choro soluçante, acertou o meu coração feito flecha. Havia sido atingido!
A menina esticou seus braços e disse um forte “não!”, afinal, as comidas eram todas dela e, embora estivesse sendo muito bem protegidas, o banquete ainda era de sua posse. Portanto, ela se pôs ao posto de defesa de seu tesouro.
Sua mãe rapidamente alcançou um copo e algo de comer. A menina aceitou a seleção da mãe e levou-a até seus lábios. Goela abaixo foi o que me parecia ser um delicioso leite com chocolate que, não delicioso o suficiente, ainda estava acompanhado de uma bisnaga cheirosa.
Entre goles, um soluço. Entre mordidas, uma lágrima. Que forte essa menina… Notei:
— Caculé, olha! Ainda tem sorvete e gelatina.
— Não, Rosenvelt! — respondeu Caculé. Ela “rosnou”.
Fui posto pra fora, mas aqueles olhos escondidos atrás de um copo plástico cheio de leite me transbordou. Antes que meu suspiro se acabasse, me certifiquei de encontrar o corredor vazio, me perdi nos braços do Caculé e pus pra fora também minhas lágrimas, lágrimas firmes de alguém que precisava estar inteiro para entrar no próximo quarto, mas que, por dentro, já havia ficado imerso.
Mais uma vez pude sentir o impacto real do que fazemos. Comuniquei a enfermeira sobre o presente que aquela garotinha havia nos dado, ela agradeceu e sorriu. Seguimos, eu e meu fiel escudeiro Caculé. Retomei:
— Caculé, será que sobrou algo pra nós lá?
— Certamente não, Rosenvelt. E mais uma porta se abriu.
Leia mais uma história do livro "Encontros, risos e outras molduras: um breve retrato da arte da palhaçaria em hospitais": No fundo sempre tem um Oi!