Elas mal saíram da infância, mas já têm uma rotina de beleza mais elaborada do que muitas mulheres adultas. Sérum, tônico, ácido hialurônico, niacinamida, retinol e até protetores solares com FPS coreano fazem parte do “ritual noturno” de milhares de meninas e meninos , alguns até com menos de 10 anos. Nas redes sociais, especialmente no TikTok, vídeos com prateleiras cheias de produtos, massagem facial e trilhas sonoras virais se tornaram febre. O skincare virou sinônimo de pertencimento e, aos poucos, também de um novo tipo de risco silencioso. O que parece inofensivo, no entanto, pode ter consequências reais, tanto para a saúde da pele quanto para a formação da identidade emocional.
A pele infantil e os riscos da exposição precoce
A pele de uma criança não é uma miniatura da pele adulta. Ela é mais fina, mais sensível, tem menos oleosidade e uma barreira cutânea em formação. A epiderme infantil é cerca de 30% mais fina, e seus mecanismos de defesa ainda não estão totalmente desenvolvidos. Isso torna a pele muito mais suscetível à absorção excessiva de ativos, reações alérgicas, irritações e alterações no pH e na microbiota natural. Ingredientes como ácidos, retinóides, niacinamida e vitamina C, comuns em produtos de skincare adulto, não foram formulados nem testados para peles imaturas, e podem comprometer a saúde cutânea da criança ao longo do tempo.
Efeitos do skincare adulto na pele infantil
Apesar da aparência lúdica e “inofensiva” de muitos vídeos virais, o uso inadequado de cosméticos adultos pode trazer uma série de efeitos adversos em peles imaturas:
Dermatite de contato: inflamações causadas por ativos irritantes ou alergênicos, como ácidos ou fragrâncias presentes em fórmulas não infantis;
Desregulação do pH cutâneo: que favorece coceiras, ressecamento e quadros inflamatórios;
Aumento da sensibilidade: resultando em descamação, vermelhidão e intolerância futura a produtos simples;
Desequilíbrio da microbiota natural da pele: com maior risco de acne, infecções cutâneas e alergias;
Manchas e hiperpigmentações: por reações com o sol após uso de ativos fotossensibilizantes;
Gatilho precoce para distorções da autoimagem: ativando comparações, inseguranças e ansiedade estética antes mesmo da adolescência.
O que a ciência já diz sobre os danos a longo prazo
Embora ainda não haja estudos longitudinais robustos sobre o uso sistemático de skincare adulto em crianças, a literatura científica e observações clínicas já sugerem riscos significativos a médio e longo prazo:
Rompimento da barreira cutânea natural, gerando uma pele cronicamente sensível e reativa na vida adulta;
Desregulação da flora protetora, predispondo a dermatites, infecções e acne precoce;
Sensibilização permanente a determinados ingredientes, o que pode restringir o uso de cosméticos futuramente;
Alteração do desenvolvimento natural da pele, incluindo colágeno, oleosidade e equilíbrio celular;
Riscos emocionais: quanto mais cedo se associa autoestima à aparência, maior o risco de surgimento de transtornos como dismorfofobia, ansiedade estética e baixa autoestima persistente.
O autocuidado virou performance
O skincare infantil que vemos hoje não é sobre dermatologia, é sobre visibilidade. As crianças e pré-adolescentes que postam seus “selfies” e rituais noturnos no TikTok não estão preocupadas com envelhecimento precoce, fotoenvelhecimento ou manchas. Elas estão tentando pertencer a uma cultura digital que valoriza a estética performática e, principalmente, adulta. Trata-se de um novo tipo de adultização precoce, que começa com cremes, mas avança sobre a construção da autoestima e da identidade. O skincare, nesse cenário, deixa de ser um gesto de autocuidado e se torna uma ferramenta de comparação e aprovação social.
O papel de adultos e profissionais
Cabe a pais, educadores, profissionais da saúde e da estética orientar com equilíbrio e responsabilidade. Isso passa por:
Filtrar o que a criança consome online;
Evitar oferecer produtos que não são necessários;
Incentivar o cuidado com higiene, proteção solar e hábitos saudáveis, mas sem romantizar rotinas adultas;
Acima de tudo, é nosso dever preservar o tempo da infância. E isso inclui o tempo da pele, do olhar e da identidade.
Se a infância é o tempo da descoberta, que ela não seja também o tempo da comparação. Se o espelho começa a ditar quem a criança precisa ser, talvez seja hora de refletir quem está realmente precisando de cuidado.
* Dra. Juliane Hostert é CEO do Instituto Hostert e cientista do Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe. Através da ciência, oferece tratamentos estéticos que combinam saúde e tecnologia para promover rejuvenescimento natural, com foco em resultados estratégicos.