O Drama da Perda Gestacional, de Maria Manuela Pontes; Ed. Ágora; R$ 45,90.
Hoje, muitas mulheres têm dificuldades para engravidar e outras sofrem abortos espontâneos. Isso é diferente da ideia que se tinha antigamente de que só as mulheres muito frágeis é que tinham essas dificuldades. De onde vem esta mudança?
Antigamente, ser mãe era objetivo máximo. Era um processo natural, para o qual a mulher estaria preparada. Somente as mais frágeis poderiam vivenciar problemas ao longo da gravidez. Hoje a mulher está mais independente e a maternidade não deixou de ser objetivo, mas antes dela existem outros. A maternidade tardia, o uso prolongado de anticoncepcionais, o estresse e o estilo de vida podem ser indicadores desta mudança, que provoca novas respostas do organismo. Outro aspecto importante é termos acesso a informação e meios de diagnóstico, que antecipam problemas e evitam situações mais graves.
Como as pessoas reagem normalmente a este tipo de situação e o que seria melhor que fizessem?
As pessoas em geral fingem – esta é a palavra certa – que nada aconteceu, que está tudo bem, afinal, se perdeu um bebê, mas logo será possível engravidar de novo. Mais do que isso, a pergunta que fica no ar é: “Para que sofrer por alguém que nem sequer chegou a existir?” As pessoas reagem ignorando, não falam sobre isso e, pior, não se disponibilizam a ouvir a mulher que perdeu o bebê. Ao nosso redor, o mundo impede que recordemos a nossa gravidez, que choremos pelo nosso bebê, as pessoas nos olham como incapazes de gerar ou dizem que gostamos de sofrer. Precisamos ser ouvidas, chorar a morte do filho, vivenciar o luto, poder partilhar momentos de vazio e, principalmente, ter respeitada a forma como pretendemos manter esse filho nas nossas vidas.
Você cita também os tabus em relação ao assunto. De que tipo eles são?
O mais grave, na minha opinião, é a sociedade achar que a perda de um bebê está ligada a problemas específicos daquela mãe. Se perdeu é porque não pode ter filhos. Não se percebe que a natureza, por vezes, também comete erros, que estão fora do controle. Eu, por exemplo, perdi dois bebês, fiz todos os exames possíveis e todos estavam dentro de padrões normais. Outro tabu é a morte de um bebê que ainda não tem uma identidade. As pessoas acham que, por ele não ter chorado ou tomado do nosso leite, não existe e, portanto, acham absurda a ligação afetiva com alguém que não chegou a existir. Quando as pessoas dizem para esquecer, parar de chorar, é como se a castrassem, a desprezassem pelo seu sofrimento. Por isso, muitas vezes, ela se fecha para o mundo e aqui começa um dos problemas mais sérios deste processo: a depressão e o temor a uma nova gestação.
A perda gestacional, muitas vezes, provoca brigas e até rompimentos. Isso se deve às cobranças dos companheiros ou da própria mulher?
Às duas. Muitas mulheres acreditam ter tido algum tipo de culpa pela perda. Alguém, afinal, precisa ser responsabilizado. Como é difícil apontar alguém, elas se punem e vivenciam uma experiência extremamente destrutiva. Os companheiros, por vezes, também cobram. Não a perda, mas a ausência delas enquanto mulheres. Os maridos podem passar a um segundo plano se não as acompanham na dor da perda, se não estão do lado delas, se não aparam suas lágrimas. Se junto a isso ainda disserem para esquecer, continuar a vida ou reprimirem o comportamento dessas mães em luto, aí a vida do casal poderá estar em risco.
Como lidou com os abortos que sofreu e quais foram as principais dificuldades?
Entre o primeiro e o segundo aborto passaram-se apenas seis meses. Fui sujeita a duas curetagens, após 24 horas de tentativas de indução de expulsão. Na primeira vez, eu dividi o quarto com outras mulheres, todas grávidas, e a única que estava perdendo o filho era eu. Uma delas estava lá com um bebê recém-nascido. Quando saí do hospital me senti completamente abandonada. A verdade é que nenhum dos filhos que felizmente dei à luz com saúde substituiu os outros dois. Eles hoje teriam 9 e 8 anos e ninguém mais fala deles. Eu me senti violada na minha integridade, achava que ninguém respeitava o que eu sentia e, por isso, optei por chorar às escondidas, por rezar furtivamente e pedir a Deus que não me abandonasse também. Desenvolvi sentimentos de autopiedade, achei que nunca seria mãe, que seria punida ou que talvez não merecesse tal condição. Cheguei a pensar em me separar, já que eu não dava um filho ao meu marido. Mas ele sempre esteve ao meu lado, respeitando os meus silêncios.
Você obteve apoio médico satisfatório?
Todas as intervenções necessárias à minha integridade física foram tomadas corretamente, mas não quanto à minha integridade emocional. Na segunda perda que tive, assinei ainda no bloco cirúrgico um termo de responsabilidade para sair do hospital já depois da curetagem. Eu estava sangrando, sentindo dores, mas resolvi sair porque sentia um abandono afetivo tão grande, que tudo seria melhor do que ficar naquele espaço. Os médicos são frios, distantes, racionais e malpreparados para situações de perda gestacional.
Como é possível reconstruir a esperança, pensar em engravidar de novo, lidar com a pressão do parceiro e até com a descrença de outras pessoas?
No livro falo da advogada Mafalda Sobral, que teve nove perdas e, como ela, existem centenas de outras. É preciso ter uma estrutura emocional gigantesca para passar por uma situação dessas. Quando se tem um companheiro presente e solidário, uma família compreensiva, a mulher tem chances de enfrentar a situação não como uma luta solitária, mas como uma luta de todos.
Como funciona o Projeto Artémis?
A Artémis tem uma estrutura de apoio por meio de um fórum nacional de partilha de emoções, medos e esperanças. Trabalhamos diretamente nos hospitais junto com médicos e enfermeiros para dar suporte às mulheres que passam pelo problema. Esta é a única instituição não-governamental em Portugal que trata do assunto. Temos planos de no futuro ampliar a nossa ação para o Brasil.
Serviço
Maternidade Interrompida –
O Drama da Perda Gestacional, de Maria Manuela Pontes; Ed. Ágora; R$ 45,90.
O Drama da Perda Gestacional, de Maria Manuela Pontes; Ed. Ágora; R$ 45,90.
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