Luto

Adeus ao pai da Curitiba moderna

Sharon Abdalla e Luan Galani
16/06/2021 21:06
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Jaime Lerner em encontro com a reportagem de HAUS, na ocasião da celebração de seus 80 anos, em 2017. | Gazeta do Povo

Um dos grandes nomes do urbanismo brasileiro e mundial, o arquiteto Jaime Lerner faleceu no dia 27 de maio, aos 83 anos, vítima de uma complicação renal. À frente da revolução urbana que levou o nome da capital paranaense para os quatros cantos do mundo a partir dos anos 1970, Lerner foi o responsável pelo fechamento da Rua XV de Novembro, criou os parques urbanos que deram a cara da Curitiba moderna e o sistema de transporte por canaletas exclusivas (o BRT), copiado em mais de 250 cidades.
Jaime Lerner em encontro com a reportagem de HAUS, na ocasião da celebração de seus 80 anos, em 2017.
Jaime Lerner em encontro com a reportagem de HAUS, na ocasião da celebração de seus 80 anos, em 2017.
Tais fatos, inclusive, fizeram com que seu nome fosse reverenciado e requisitado por onde passasse (são muitas as cidades que contam com projetos assinados por Lerner) e figurasse como o do segundo maior urbanista do mundo, de acordo com a revista norte-americana de planejamento urbano Planetizen, que em 2018 listou os 100 profissionais do setor mais influentes de todos os tempos – sendo Lerner o único brasileiro.
A publicação não foi a primeira a exaltar o trabalho realizado pelo ex-prefeito e ex-governador que, afastado da vida política há mais de uma década, teve na capital paranaense seu maior legado. Anos antes a revista “Time” já havia destacado Jaime Lerner entre os 25 pensadores mais influentes do mundo. “[Curitiba] É uma resposta para uma pergunta que de outra forma seria hipotética: como as cidades seriam se urbanistas, e não políticos, estivessem no poder?”, completou o “The New York Times”, em 2007.

O urbanista

Filho de imigrantes judaico-poloneses e graduado em Arquitetura e Engenharia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Lerner conheceu na academia muitos dos profissionais que estiveram ao seu lado na estruturação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), em 1965, e que trabalharam ao seu lado nas soluções urbanas e de transporte que colocaram Curitiba no mapa. Estão nesta lista figuras como Lubomir Ficinski Dunin (falecido em 2017), Domingos Bongestabs, Abrão Assad e Osvaldo Navaro.
No início dos anos 1970, a indicação do seu nome à prefeitura deu ao arquiteto a oportunidade de colocar todas elas em prática. E para os críticos de plantão, a resposta vinha em tom de bom humor, como quando colocou as crianças para pintarem no calçadão recém-inaugurado na Rua XV de Novembro e assim conteve o protesto de um clube de automóveis que era contrário ao fechamento da via para os veículos.
Foi assim também com as canaletas para a circulação exclusiva dos ônibus ‘expressos’, que trouxeram para a superfície o conceito do metrô, modal tido como “caro” na avaliação do urbanista.

A segunda revolução 

Nos anos 1990, os olhos de Lerner se voltaram ao meio ambiente e à sustentabilidade, tão em voga nos dias atuais, em um movimento que muitos podem avaliar como de vanguarda. Em sua terceira gestão como prefeito de Curitiba, ele ensinou a cidade a separar o lixo orgânico do reciclável ao criar o programa “Lixo que não é lixo”, e fez da Família Folha a cara da então “Capital Ecológica”.
São desta época, também, parques como a Ópera de Arame, o Jardim Botânico e a Rua 24 Horas que, erguidos em metal e vidro, inauguraram uma nova linguagem arquitetônica para a cidade e até hoje mantêm sua soberania quando se fala dos cartões-postais curitibanos.
“[Esta linguagem foi uma] boa coincidência. Estas eram obras que precisavam ser construídas rapidamente, e o material metálico foi o escolhido pela agilidade [que proporciona]. Elas estão incluídas na escola da boa arquitetura, que é a arquitetura simples, marcante e rápida em sua execução”, detalhou Lerner em entrevista à HAUS, em 2017.
Para o arquiteto e urbanista, como gostava de ser reconhecido e lembrado, e que trabalhou até os últimos dias em seu escritório, localizado no Cabral, faltou apenas uma coisa: “mais vida”, como Lerner mesmo destacou em seu último encontro presencial com a reportagem de HAUS, em dezembro daquele ano, quando celebrou seu 80º aniversário.

Arquitetos, urbanistas e intelectuais repercutem o legado de Jaime Lerner

Prefeito Jaime Lerner (esq.), Hairton Romani (centro) e um diretor da Marcopolo, durante apresentação do protótipo do novo ônibus Expresso, na sala de reunião do IPPUC. O modelo foi projetado em conjunto pelo setor de planejamento e a encarroçadora de Caxias do Sul. Os veículos começaram a circular no eixo Norte/Sul, ligando Santa Cândida ao Capão Raso, a partir de 22 de setembro de 1974.
Prefeito Jaime Lerner (esq.), Hairton Romani (centro) e um diretor da Marcopolo, durante apresentação do protótipo do novo ônibus Expresso, na sala de reunião do IPPUC. O modelo foi projetado em conjunto pelo setor de planejamento e a encarroçadora de Caxias do Sul. Os veículos começaram a circular no eixo Norte/Sul, ligando Santa Cândida ao Capão Raso, a partir de 22 de setembro de 1974.
Apenas alguns dias após sua morte, as mobilizações para imortalizar e homenagear seu legado já começaram a ser vistas em todo o país. O deputado federal Evandro Roman protocolou na Câmara Federal o projeto de lei que pede que a segunda ponte de integração entre Brasil e Paraguai venha a ser chamada de “Ponte Jaime Lerner”. Já o projeto do vereador de Curitiba Alexandre Leprevost (SD) propõe que o Parque Barigui passe a se chamar Parque Jaime Lerner.
O movimento Pro-Paraná também começou uma discussão para buscar formas representativas de homenagear o arquiteto. Entre as ideias em debate por uma comissão multidisciplinar estão a construção de uma estátua para ser colocada na Rua XV ou mesmo a mudança do nome do logradouro para Rua Jaime Lerner. “Ele foi a pessoa mais criativa, talentosa e motivadora com a qual eu tive a oportunidade de trabalhar”, lembra o presidente da entidade, Marcos Domakoski, que trabalhou no gabinete de Lerner entre 1978 e 1979. “Ele está entre as maiores personalidades do estado. Seu trabalho projetou Curitiba para o mundo.”
Apesar de seu legado estar vivo em diversos cantos de inúmeras cidades pelo mundo, Lerner vive principalmente no legado humano que construiu. Foi guru intelectual de diversas gerações de arquitetos e uma liderança transformadora. Para Jonas Rabinovitch, arquiteto carioca que há 25 trabalha na ONU, “Lerner liderou uma nova maneira de se pensar a cidade de forma integrada. Mas, acima de tudo, ele liderou o pensamento de toda uma geração de arquitetos e urbanistas e de futuras gerações de planejadores urbanos. Essa cartilha ainda está sendo escrita”, avalia o profissional.
A arquiteta Samira Barakat, da marca de mobiliário Jaime Lerner Design, confirma. “Ele foi meu grande mestre. Foi quem me ensinou muita coisa. Entrei no escritório dele como estagiária, e me tornei sua sócia. Tudo que aprendi foi com ele”, relata Samira.

Otimismo e vontade de aprender

O arquiteto Geraldo Pougy, que é presidente do Conselho do Centro Brasil Design, hub nacional de inovação criado durante o governo de Jaime Lerner, descreveu nas redes sociais o que mais lhe marcou no ex-prefeito de Curitiba.
“Que tristeza ver o Jaime partir. Especialmente nesses tempos de falta total de otimismo, de empatia e de capacidade de conversar. Jaime era pura empatia e otimismo: atraia criativos e pessoas interessantes. Gostava de conversar e de aprender. Acho que esse era um dos segredos do seu talento urbanístico: ouvir as pessoas. Buscava entender primeiro, ao invés de chegar com a solução pronta. Como ele mesmo disse: meu nome é Lerner, gosto de estudar”, defende Pougy.

Legado imortal

Jaime Lerner foi um dos arquitetos e urbanistas mais importantes da história do mundo ao liderar a revolução urbana em Curitiba.
Jaime Lerner foi um dos arquitetos e urbanistas mais importantes da história do mundo ao liderar a revolução urbana em Curitiba.
O arquiteto Felipe Guerra, sócio do escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados, despediu-se do ‘professor’ lembrando que seu legado jamais será esquecido. “Foram 20 anos dessa grande experiência, dividindo com ele a prancheta, os conhecimentos, os ensinamentos, tudo sempre com bom humor único. Algumas pessoas deveriam ser eternas, Lerner certamente seria uma delas. O que alivia a dor da perda é a certeza que o legado é imortal e que será só andar por Curitiba para sentir ele ainda vivo!”, disse em publicação em uma rede social.
Outro sócio do escritório, o arquiteto Fernando Canalli, também prestou sua homenagem em forma de um breve poema: “Só consigo imaginar uma magna semana de Arquitetura e Urbanismo nos céus; JL abrindo os trabalhos num vasto, simples e brilhante cenário harmônico recheado de Verdade! Todos que lá se encontram têm semblante descontraído e interessado. O Jaime com seu sorriso único preenche os Corações e mentes de todos que lá se encontram”.

“Eu trabalho com o lado bom das pessoas”

O arquiteto Pedro Sunyé, mestre pela FAUUSP, que trabalha com o desenho de cidades no Jaime Lerner Arquitetos Associados, tem uma relação com o arquiteto desde a infância. “Nasci numa cidade que era Jaime Lerner. Pequeno, ia andar no calçadão da Rua XV e minha mãe falava que o Lerner tinha criado aquela rua para pessoas e não para carros - assim as crianças podiam desenhar deitadas no chão. Iria pegar um ônibus, era o Lerner que tinha criado o sistema de transporte, desde o biarticulado, a canaleta exclusiva, até estação em forma de tubo. Ia para o parque? Era do Lerner”, brinca.
“Cresci querendo entender o que fazia afinal esse tal de Jaime Lerner que tinha dedo em tudo que eu tocava. Fiz vestibular para Arquitetura e após 4 anos estava sentado em frente a ele, olhando para os profundos olhos azuis, e pedindo um estágio. Conheci o Jaime com 74 anos, numa época dócil, já afastado da política, com todas as histórias do mundo e cheio de vontade para contá-las. Eu, aos 22, com todas as perguntas possíveis e ao lado uma fonte inesgotável de piadas e de conhecimento. Achando que ia aprender sobre “arquitetura”, me enganei, aprendi sobre pessoas e como o desenho do espaço é quem promove o encontro delas”, confidencia Sunyé.
“Sua máxima, ‘Eu trabalho com o lado bom das pessoas’, nunca sairá da minha cabeça. Enquanto o mundo elogia Jaime Lerner, ele só falava bem de seus amigos e colegas, cada um deles com seu saber e responsável por uma pequena fração desta gigante figura que conhecemos. Se até ontem eu me perguntava qual era o “meu lado bom” - já que como arquiteto fiz tão pouco perto do que dele recebi - hoje não resta dúvida que é contar para vocês tudo que aprendi”.

Arquitetura de luto

A arquiteta Sylvia Ficher, professora emérita da Universidade de Brasília (UnB), uma das sumidades em história do urbanismo e da arquitetura – que não é Paciornik no registro oficial, mas é com muito orgulho Paciornik nos genes –, escreveu com exclusividade para HAUS: “Como curitibana, estou de luto por perdermos Jaime Lerner. Foi ele quem nos legou não apenas uma Curitiba cidade maravilhosa. O Jaime nos legou o orgulho de sermos curitibanos”, sentencia Sylvia. “Como arquiteta e urbanista, é minha profissão que está de luto, tendo perdido em tão poucos dias duas de suas mais notáveis referências. Na arquitetura, Paulo Mendes da Rocha; no urbanismo, Jaime Lerner.”

Equipe que fez a diferença

Jaime Lerner sempre reconheceu a importância da equipe que trabalhou com ele na revolução urbana que conduziu em Curitiba e no Paraná. Uma dessas figuras importantes é o arquiteto Abrão Assad, 78 anos.
“Tenho com o Lerner uma relação de amizade muito antes de ser prefeito. Fizemos concursos juntos. Era uma questão de identidade. A gente brincava que formávamos um dueto. Cada um fazia uma parte do trabalho e, depois, aquilo tudo se completava”, afirma Assad. “Ele teve visão estratégica quando Curitiba, em 1971, tinha apenas 600 mil habitantes. Em vez de condenar a cidade a uma série de problemas com o planejamento concêntrico que se fazia na época, o Jaime viu uma cidade linear, que cresce junto com os eixos estruturais.”

Entidades e prefeitura

A Prefeitura de Curitiba decretou luto oficial de três dias pelo falecimento de Lerner. O prefeito Rafael Greca (DEM) postou em suas redes sociais: “O notável urbanista curitibano […] foi um dos mentores da valorosa equipe que moldou a história recente de Curitiba urbana. Seu admirável legado contempla do Teatro Paiol ao calçadão da rua das Flores. Do Parque Barigui à Ópera de Arame. Do Jardim Botânico de Curitiba ao Jardim Zoológico do parque do Iguaçu. Da Cidade Industrial de Curitiba ao sistema BRT”. Greca lembrou também que foi Lerner quem viabilizou o Parque Automotivo do Paraná, o Anel de Integração, os Jogos Mundiais da Natureza em Foz do Iguaçu e o Museu Oscar Niemeyer, orgulho de Curitiba.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Paraná (CAU-PR) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-PR) emitiram notas de pesar em nome de todos os arquitetos e urbanistas paranaenses, destacando que o arquiteto curitibano deixa uma forma inovadora de pensar as cidades, priorizando o ser humano na definição do planejamento urbano.