A cozinheira que decidiu enviar comidas para estranhos e viu a magia acontecer
NYT, POR KIM SEVERSON
23/12/2018 12:00
Presentear desconhecidos com comida é uma forma de compartilhar afeto. Foto: Pixabay
Abrir um pacote de comida caseira enviado por um estranho e comer seu conteúdo aparentemente seria a última coisa que alguém faria nos dias de hoje, quando a desconfiança e o medo parecem fazer parte da nossa psique nacional. Entretanto, é exatamente o que Liz Larkin, 52, que gerencia uma empresa de comida caseira em Pound Ridge, Nova York, nos Estados Unidos, pretende quando coloca no correio uma caixa de biscoitos e bolinhos para alguém que nunca viu na vida e espera um pacote dessa mesma pessoa recheado de presentes da cozinha dela.
“Parece um pouco estranho, mas ter esse tipo de conexão com um desconhecido é uma coisa muito legal. Fazer o bem é meio que contagioso”, afirmou Larkin. Assim como muitos cozinheiros que veem na comida uma forma de presente, ela sabe como pode ser mágico trocar algo delicioso e caseiro com outro cozinheiro, mas é difícil encontrar espaço para essas trocas nos bairros.
A carência para esse tipo de relacionamento foi um dos motivos que levaram Larkin a participar da troca de comida de fim de ano do site Food52, pelo qual cozinheiros trocam caixas com doces caseiros e presentes personalizados. Neste ano, 1.107 pessoas de 15 países se inscreveram, um recorde para esse tipo de empreendimento. Desde que a troca começou, há oito anos, ela estimulou amizades duradouras, além de ter se transformado na tradição de fim de ano favorita de alguns.
Adrienne Kerrigan, escritora especializada em culinária de Seatle, Washington, há anos é adepta da troca. Cinco anos atrás, o par escolhido aleatoriamente para ela descobriu, por meio do organizador, que Kerrigan estava para dar à luz. Ele e seu parceiro, então, embalaram um cobertor tipo swaddle (que envolve o bebê como um envelope) e um recipiente térmico que trazia o que eles chamaram de “maçãs cozidas para sempre”. Junto, o casal incluiu uma nota, explicando que tinha alimentado o próprio bebê com aquelas maçãs de cozimento lento. Aquela fornada acabou sendo uma das primeiras comidas sólidas que Kerrigan ofereceu a seu filho.
Compotas, biscoitos e bolos artesanais são enviados para amigo-secreto pelo correio. Foto: Pixabay
Teve também a mulher de St. Paul, Minnesota, que enviou a Nina Wladkowski uma caixa de arroz selvagem e “maple syrup” (xarope de bordo), além de alguns presentes de seu jardim, incluindo chalota (um tipo de cebola), batata-doce e cinco amendoins, os únicos que conseguiu colher naquele ano. “O fato de ela não ter conseguido produzir um grande número de amendoins e mesmo assim decidir enviar toda sua pequena colheita para uma estranha no Alaska realmente me emocionou”, lembrou Wladkowski, 29 anos, que trabalha no departamento de propaganda do jornal “Anchorage Daily News”.
Ela retribuiu com um pote de geleia caseira e uma nota de agradecimento: “Dizem que a comida aproxima as pessoas, mas esse tipo de compartilhamento aumenta a mesa nacional e internacionalmente”, disse ela.
Para Noëlle Bittner, que estava estudando biologia evolucionária na Universidade do Arizona, em Tucson, o Food52 era uma maneira de postergar suas obrigações. Quando não queria estudar, Bittner navegava no ainda recente site da Food52, que ela descobriu em 2010, quando ainda era uma pequena comunidade de cozinheiros com objetivos comuns e não o site profissional de culinária e trocas que é hoje.
Ela acompanhou os visitantes regulares do site, que organizavam encontros para os amantes da cozinha em Nova York, e ansiava por compartilhar da mesma camaradagem. Mais ou menos na mesma época, tomou conhecimento do Amigo Secreto que a Reddit, website que congrega mais de um milhão de comunidades on-line, começara havia alguns anos. Pacotes de comida – como chocolates russos, guloseimas veganas, além de muito café e chá – são uma pequena amostra dos presentes trocados entre dezenas de milhares de participantes do projeto.
Por que não tentar fazer algo similar, mas com pessoas que realmente queiram cozinhar umas para as outras? – ela se perguntou e postou a ideia no Food52. Cerca de 110 pessoas responderam e Bittner começou a conectá-las fazendo as combinações a mão. O projeto se expandiu tanto que ela passou a usar tabelas e um software para coordenar os pareamentos, que são aleatórios. Ela não se deixa influenciar por pessoas que fazem lobby para ser ligadas a quem é conhecido pelos pacotes maravilhosos ou a quem está mais próximo.
Para participantes, a troca de presentes é contagiosa. Foto: Bigstock
A única exceção é feita a pessoas que vivem fora dos Estados Unidos – por exemplo, ela tenta manter as pessoas da Europa e do Canadá juntas – e a quem tem restrições nutricionais parecidas. “Tento ligar pessoas que não comem glúten com outras que também preferem evitar o ingrediente”, explicou. É indicado também que os pacotes correspondam a um valor de 25 dólares (cerca de 100 reais), seja no valor monetário ou calculando o tempo e o esforço para produzi-los. Bittner aconselha que os participantes “presenteiem da mesma forma que gostariam de ser presenteados”. Muitos extrapolam e usam a pouca informação que têm sobre o destinatário para obter mais informações on-line e assim produzir um pacote mais elaborado.
Fotos dos presentes são postadas no Instagram, que servem tanto como inspiração quanto como combustível para os comentários. O feed é invadido por fotos de conserva de pimenta-jalapenho, filões de pão de centeio marmorizado, biscoitos amanteigados de cardamomo, um tipo de pé-de-moleque de pistache, brownie e bombons de bourbon. Os Biscoitos pela Paz Mundial de Dorie Greenspan são populares. Nova-iorquinos com saudades de casa chegam até a receber bagels.
Os participantes são encorajados a doar 5 dólares (aproximadamente 19 reais) para apoiar causas assistenciais. Este ano, a beneficiária será a Action Against Hunger (ação contra a fome). Até agora, foram arrecadados 12.600 dólares (pouco mais de 48 mil reais). A Food52 também colabora.
Amanda Hesser, ex-editora e colunista do “New York Times” que fundou a Food52 com Merrill Stubbs (ambas participantes da troca de comida), acredita que o projeto se destaca numa época em que grande parte da vida acontece no universo on-line.
“Existe algo de emocionante em receber um caixa de delícias de um estranho, que dispendeu tempo para assar a receita favorita de biscoitos dele para você, além de incluir na embalagem alguma conserva de um produtor local ou uma colher de madeira entalhada pelo tio”, relatou.
Em Chicago, troca no mês de dezembro já é tradição
O mesmo sentimento está impulsionando as trocas de comida local, que surgiram há cerca de uma década, acompanhando a cultura culinária do “faça você mesmo”, contou Emily Paster, produtora de conservantes naturais e blogger que, em 2016, escreveu o livro “Food Swap: Specialty Recipes for Bartering, Sharing & Giving – Including the World’s Best Salted Caramel Sauce” (em tradução livre: “Trocando comida: receitas para permutar, compartilhar e dar – Incluindo a melhor calda de caramelo com sal do mundo”).
Em 2011, Paster fundou um grupo de compartilhamento de comida em Chicago que, até hoje, organiza uma troca de presentes em dezembro, muito esperada. As pessoas aparecem para compartilhar limoncello e extrato de baunilha artesanais, ou ainda pacotinhos personalizados com misturas para sopa e doces natalinos.
Quando questionada, com certa frequência, se dividir comida com estranhos é seguro, ela responde: “Bom, a boa notícia é que você tem a chance de conversar com a pessoa antes de fazer a troca, mas, claro, você não sabe o que ela está fazendo na cozinha. Mas o mesmo acontece quando você vai à festa comunitária da igreja: você não sabe o que tem naqueles pratos também.”
A beleza de trocar receitas feitas em casa, segundo ela, é conhecer outras pessoas que, como você, valorizam todo o processo de cozinhar.
Não dá mais tempo para se inscrever na troca deste ano da Food52, mas não é tarde demais para organizar um amigo secreto de comidas com os amigos e a família. Trocar presentes comestíveis alivia a pressão financeira de ter de presentear e ajuda a promover a comunidade e a boa vontade. Além disso, é mais fácil errar a mão com uma roupa do que com um pacote de biscoitos feitos em casa.
“As pessoas gastam uma fortuna em presentes que podem não agradar, e aí, o que você faz com eles? Pelo menos, você sabe que as lembranças que vêm da cozinha foram feitas com amor, e, se não gostar, podem ir para a composteira”, concluiu Paster.