Falar sobre a morte é algo muito difícil, e somente quando nos deparamos com familiares em estado terminal, ou nós mesmos nesta situação, nos surpreendemos com a perda de vínculo com essa experiência. Para todos, e principalmente para quem se encontra neste momento da vida, desenvolver a espiritualidade tem a capacidade de ser uma experiência transformadora. Mas não confunda com religião.
Buscar esse conhecimento espiritual tem mais a ver com a procura por sentidos que transbordem a própria vida, como explica a professora de Tanatologia e Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Tanatologia e Cuidados Paliativos de Minas Gerais (Sotamig), Maria Emídia de Melo Coelho. “A espiritualidade, que é o questionamento sobre o existir, pode ocorrer mesmo sem uma religião por trás, embora essa discussão esteja presente nas religiões. É ela quem ajuda a construir o sentido do sofrimento pelo qual se passa, encoraja a revisão da vida, ajuda a trabalhar a culpa, o remorso, o perdão e também leva a pessoa a realizar a reconciliação consigo mesma”, diz ela.
Esse impacto a partir do entendimento da realidade é muito positivo, como explicou o pesquisador suíço René Hefti, da Universidade de Bern na Suíça, durante uma palestra em Curitiba na PUCPR sobre o tema, no início de agosto. “Durante o cuidado paliativo, a pessoa é confrontada com a sua morte, e a espiritualidade não só diz a ela que está indo embora, mas que ela precisa se preparar para morrer. Se apegar à esperança de cura é algo natural no início, mas a pessoa não fica apenas nesse aspecto, percebendo logo que tem de encarar de frente seus problemas”, afirma Hefti, que também faz parte da European Research Institute for Spirituality and Health.
O paciente ou familiar que não acredita em uma continuidade da vida após a morte não se sentirá confortado pela espiritualidade, e para ele essa ferramenta não funcionará. “A hora de dizer adeus, apesar de não ser reconhecida como sagrada por algumas pessoas, é uma passagem delicada e que merece o respeito de todos, dentro de suas concepções individuais”, afirma a psiquiatra e psicoterapeuta tanatóloga, Mariel Paturle.
Abordagem
Uma das abordagens da morte, neste caso, para ser mais equilibrada e realista, segundo a professora Maria Emídia de Melo Coelho, seria reconhecer e valorizar de forma positiva a vida vivida. “Acolher a necessidade de pensar a morte e dela falar é indispensável em uma cultura de negação e imposição de silêncio sobre o tema. Promover um otimismo cego ao colocar em nossas bocas palavras de consolo, na tentativa de eliminar dores e sofrimentos, sem se aprofundar no que eles têm de mais verdadeiro e legítimo, apenas aumenta a tristeza e a solidão de quem sofre”, explica Maria Emídia.
Saber para viver melhor
Uma das pacientes do pesquisador suíço René Hefti, da Universidade de Bern, descobriu que tem, provavelmente, mais seis meses de vida, e todos os médicos com quem ela se consultou fizeram questão de que ela soubesse disso. “Ficar reforçando não ajuda o paciente de forma alguma. Ela “começou” a viver agora e morrer não é sua prioridade, ela ainda não está aberta a isso. O médico precisa ver o contexto, ver o que faz sentido e o que o paciente quer saber naquele momento”, alerta Hefti.
Por outro lado, não falar também pode ser prejudicial, mantendo a morte e as doenças como temas tabus. “Quando o silêncio é quebrado, tanto o paciente, como os familiares, agradecem e expressam serenidade, tranquilidade e um sentimento de paz, decorrentes dos esclarecimentos. A verdade nunca faz mal, desde que colocada de forma respeitosa e amorosa”, justifica a professora de tanatologia Maria Emídia de Melo Coelho.
Acompanhamento
Descobrir-se é um processo solitário, mas não há razão para deixar o médico isolado do processo, ainda mais se estiver em contato direto com o paciente. Hoje existem instrumentos que ajudam a colher a história espiritual da pessoa, com questionários sobre a vida e as necessidades daquele paciente. “O acompanhamento espiritual pode supor que nos tornamos companheiros de viagem, em uma experiência de sofrimento inevitável que não pode ser resolvida, mas pode ser atravessada, para posteriormente ser transcendida”, explica a professora Maria Emídia. Entre médico e paciente cabe mais um benefício. Compartilhar diferentes visões sobre a dimensão espiritual, mesmo de uma perspectiva religiosa, pode ajudar ambos na compreensão e aceitação daquele momento.
Por uma morte mais próxima
O despreparo em lidar com a morte e aceitá-la faz com que muitas vezes os familiares se apeguem excessivamente ao doente, e não suportem a partida iminente. Essa característica não diz respeito apenas aos afetuosos habitantes da América Latina. “O conceito da morte também não faz parte do cotidiano dos europeus, mas já há um pequeno movimento que está ativamente buscando lidar mais com isso, porém a maioria não quer pensar na morte”, diz o pesquisador René Hefti.
Segundo a psiquiatra e psicoterapeuta tanatóloga, Mariel Paturle, é justamente essa distância que tem feito com que muitas famílias peçam aos médicos medidas heroicas, na maioria das vezes fúteis e inúteis, que só trarão mais sofrimento e dor aos doentes, prolongando o morrer. “Muitos leitos de CTI´s no país estão ocupados com pacientes que deveriam estar recebendo apenas cuidados paliativos e atendimento psicológico às famílias. Um ambiente de aceitação e serenidade com a morte facilitaria a partida”, diz Mariel, citando o conhecido professor budista Sogyal Rinpoche: “Não há caridade maior que ajudar alguém a morrer bem!”.
Sim, eu vou morrer
Admitir a morte todos os dias é uma das sugestões da escritora, socióloga da saúde e jornalista britânica Anne Karpf no livro Como Envelhecer, da editora The School of Life. No capítulo que trata sobre a finitude, a autora explica que a morte precisa nos acompanhar todos os dias, e não nos perseguir nos minutos finais. “Embora todos nós morramos no singular (…), tentar aceitá-la ao lado de outros faz com que nos sintamos menos excluídos, menos perseguidos por ela”, escreve Anne.
Uma das tentativas de manter a morte por perto são os encontros dos Death Cafés, que reúnem pessoas interessadas em discutir o morrer, para melhorar a consciência da própria finitude. O Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Itália, e inclusive o Brasil têm adeptos. Em São Paulo, o Death Café Sampa reúne 20 interessados, todo mês, em uma chácara. “Cada um fala sobre a morte e o impacto que ela causa a si, antes e depois de acontecer. Ninguém vai lá para resolver problemas, não queremos convencer ninguém sobre nada”, explica a idealizadora da iniciativa em São Paulo, Elca Rubinstein.
Fases mutantes
São conhecidas as fases do luto, desde a negação, passando pela negação, barganha, raiva, depressão até chegar à aceitação. Embora pareça que esse caminho seja único, essas fases não são lineares, e a pessoa pode ir e vir pelos estados mutantes durante todo o processo. (Ilustração: Felipe Lima/Gazeta do Povo)