Aos 100 anos a paranaense Sara Furquim escreve, costura e esbanja juventude
Raquel Derevecki
01/02/2019 17:00
Muito lúcida e simpática, dona Sara Furquim se mantém ativa e recorda a vida em versos de poesia. Foto: André Rodrigues/ Gazeta do Povo | Gazeta do Povo
Aos 100 anos recém completados, Sara Furquim ainda costura, caminha pela casa sem precisar de ajuda, prepara doces caseiros e escreve inúmeros poemas – ou trovas – que descrevem seus dias e pensamentos em quatro versos. A centenária – que mora em Rio Branco do Sul, a 50 quilômetros de Curitiba – também ama ler, atender visitas e contar histórias que viveu quando criança, estudante, professora e vereadora da cidade.
Sentada na sala de estar do casarão da família, localizado no alto da Travessa Furquim, próximo à entrada do município, a moradora revive algumas dessas lembranças. “Nasci em 1918, ano da gripe espanhola. Minha mãe [Josephina Faria Furquim] contava que morreram tantas pessoas que os corpos eram levados em lençóis porque não dava nem tempo de preparar caixão para todos”. A matriarca também foi infectada pelo vírus influenza, causador da pandemia. “Ela disse que caiu todo o seu cabelo e que precisou me tirar do seio com menos de dois meses de vida para sobrevivermos”, relata a idosa.
A gripe passou e levou com ela mais de 50 milhões de pessoas em todo o mundo, mas Sara permaneceu saudável para contar essa história e muitas outras de sua infância. “Passei tanta coisa boa naquela época, e um fato que não esqueço foi quando peguei um cachorrinho na rua e trouxe para casa. Mamãe deixou eu ficar com ele e até fez uma casinha. Pena que o pai não aceitou e tive que dar o bichinho”, recorda ao balançar a cabeça e fixar os olhos à parede da casa, reconstruindo na memória cada detalhe vivenciado naquele dia.
O casarão amarelo de dois andares e 250 metros quadrados que até hoje é o lar da professora foi construído por seu pai, Octávio Furquim, no ano de 1928. Na época, ele era dono de uma empresa de ônibus de viagem – ou lotações, como eram chamadas – e atuava na linha entre o município de Cerro Azul, no interior do Paraná, e a capital. A viagem de quase 120 quilômetros demorava dois dias e o empresário decidiu construir o imóvel para servir de pousada aos passageiros que atendia. Até hoje os quartos são numerados. Além disso, a localização é privilegiada pois, a poucos metros da casa amarela ficava a linha férrea.
Ao apontar a direção dessa antiga estrada de ferro, várias lembranças vêm à mente de Sara. Por ali, passaram os vagões de trem que ela usava para chegar à capital em busca de conhecimento.
“Meu pai não queria que eu estudasse porque lugar de menina era em casa, mas minha mãe tinha o sonho de me ver como professora, lutou por isso e o convenceu. Ela até me deu o nome de Sara porque era curto e fácil para os alunos decorarem”, afirma.
Sara estudou em Rio Branco do Sul até a terceira série do ensino primário – grau máximo oferecido na cidade – e continuou a vida escolar em Curitiba. Na “cidade grande”, a jovem morou na casa de uma família, perto da Praça 19 de Dezembro, no centro. “Da janela da sala eu via a praça inteira e lembro o dia em que avistei lá longe uma pessoa com uma cestinha. Percebi que era minha irmã Maria Luiza, que tinha ido sozinha até a cidade só para levar um pão especial que a mãe tinha feito para mim. Foi muito bom”.
Sara estudou no Instituto de Educação de Curitiba, no coração da cidade. Ali, completou o ensino secundário – hoje, o ensino médio – e teve professores como Erasmo Pilotto, que hoje dá nome à instituição, e Helena Kolody, uma das poetisas mais importantes do Paraná. “Sempre gostei de estudar e, quando me preparei para o exame de admissão [prova escrita e oral obrigatória para estudantes que buscavam vaga no ensino secundário], lembro que eu acordava cedo e sentava no banco da rua para revisar o conteúdo usando a luz do poste”.
Tempos de professora
A dedicação de Sara lhe garantiu o diploma do Magistério e o emprego de professora em sua cidade natal. Ali, começou a lecionar com aproximadamente 18 anos, e foi nomeada ao cargo pelo governo do estado aos 21. “Trabalhei muito tempo dando aulas nos três turnos, e sempre ia e voltava à pé”, relata a educadora, que sente saudades da antiga sala de aula. “Esses dias eu até sonhei com minha classe.”
Segundo ela, as crianças sentavam em carteiras duplas, eram muito educadas e precisavam pegar uma pequena tábua com a escrita “licença” antes de sair da sala. “Essa tabuinha ficava em cima da minha mesa e garantia que só um aluno saísse por vez”.
Detalhes como o balde de água disponível para os alunos beberem e a caneca utilizada pelos estudantes para encher os copos também são lembranças que a professora Sara guarda com carinho em sua memória.
“No começo, essa caneca era a casca do coco amarrada em um cabo meio torto”, conta, sorrindo.
A infraestrutura precária não impedia a professora Sara de desempenhar seu trabalho. Em pouco tempo, ela inaugurou o primeiro Jardim de Infância da cidade e também a primeira Biblioteca Pública, que renderiam muitas histórias de sucesso no futuro. Um de seus alunos, por exemplo, se tornou um cartógrafo mundialmente conhecido e até convidou a professora para acompanhá-lo em um evento na Organização das Nações Unidas (ONU), nos Estados Unidos.
Fora da sala de aula
Além de professora, dona Sara também passou pela Câmara Municipal de Vereadores como a primeira mulher eleita para o cargo na história de Rio Branco do Sul. Nos quatro anos em que representou a população, criou o ponto de ônibus coberto e conseguiu a aprovação de alguns projetos. Mas a profissão a decepcionou e ela não tentou a reeleição.
Ela conta que também pensava em ser médica, mas seu trabalho e a atenção que dedicava à família não permitiram a realização desse sonho. Por isso, ela incentivou o irmão caçula, Benedito Furquim Neto a estudar Medicina e o ajudou financeiramente até ele conseguir exercer a profissão.
Ela lembra da boa relação que teve com seus outros irmãos: Maria da Luz, Jeová e Angélica e reforça a proximidade com Maria, que faleceu aos 33 anos devido à nefrite, doença grave que afeta os rins e não tinha cura.
“Nunca fui hospitalizada, mas dormi muitas vezes em um hospital para cuidar da Maria da Luz. Ela era professora e morreu noiva, aguardando o casamento”, recorda a idosa.
Assim como a irmã, Sara também ficou noiva, mas nunca se casou. “Ele era telegrafista e, depois que me pediu em casamento, foi trabalhar em Paranaguá. Nos correspondíamos por carta e um dia ele disse que me levaria para morar com ele. Só que eu não podia deixar minha irmã e nem minha mãe, que também não tinha muita saúde”.
Outro homem também tentou pedir Sara em casamento, mas dessa vez, a família não aprovou a união. “Falei com papai e, no dia em que o moço veio pedir minha mão, o pai se escondeu na casa dos fundos e só saiu tarde da noite, quando o visitante desistiu. Acabei não me casando depois”, diz a idosa.
Sara, então, encontrou companhia na literatura e passou a expressar seus sentimentos por meio de trovas de sua autoria. Os versos eram escritos em inúmeras cadernetas – que até hoje estão guardadas – e falam sobre amor, fé, amizade e família. Um resumo de todos os pensamentos da centenária.
“O amor quando é verdadeiro
no peito em que faz guarida
principalmente o primeiro
deixa marca em nossa vida”
(Sara Furquim)
Sara já escreveu mais de 300 trovas, faz parte da União Brasileira de Trovadores e até hoje dedica alguns momentos à obra poética. Mas foi o trabalho como professora que a tornou conhecida em Rio Branco do Sul, onde é convidada para dezenas de eventos, sempre com honras. “Só que agora estou ficando mais em casa por causa da dor nas costas e nos joelhos. É que estou ficando velha”, brinca a professora, que comemorou seus 100 anos em uma festa com a presença de 200 convidados em dezembro de 2018.