Comportamento

Autora de “Mensagem para você” revela que descobriu leucemia depois de se apaixonar

New York Times, por Delia Ephron
31/05/2017 09:00
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Roteirista do filme Mensagem Para Você (foto), Delia Ephron é especializada em contar como as pessoas se apaixonam. Foto: divulgação

Pensei que tinha caído dentro de uma das minhas próprias comédias românticas.É que é assim que ganho a vida. Com minha irmã, Nora, escrevi “Mensagem Para Você”, entre outros roteiros. Sou especializada em contar como as pessoas se apaixonam.
E foi assim que tudo começou.
Em agosto passado, escrevei um artigo para relatando minha tentativa de desconectar o telefone do meu falecido marido e, assim, acabei no inferno da Verizon (operadora de telefones dos EUA). Em outubro, recebi um e-mail de um homem que lera a matéria. Um homem que Nora me apresentou quando eu tinha 18 anos e ele, um estagiário que ela conhecera na Newsweek. “Chegamos a sair três vezes”, escreveu.
Agora ambos tínhamos 72. Estamos falando de 54 anos atrás. “Fomos a um jogo de futebol do Columbia. Estava nevando horrores”, contou Peter quando confessei, no e-mail de volta, que não me lembrava absolutamente nada de nossos encontros.
Ele agora era psiquiatra, um analista junguiano, e morava na região metropolitana de San Francisco.
Havia coincidências. Ele teve problema semelhante, com a AT&T, tentando desconectar o telefone da mulher quando ela morreu. A última viagem que eles fizeram juntos fora para Siracusa, na Sicília; meu livro mais recente, “Siracusa”, se passa ali. Peter me disse que adorou, aliás. Ele sabia como conquistar o coração de uma escritora.”Quer esticar essa nossa conversa? Porque eu quero, e muito”, escreveu ele.
Pouco antes, eu tinha jurado que não estava interessada em conhecer ninguém e, sinceramente, a ideia de tirar a roupa na frente de um homem não me atraía nem um pouco. Eu estava satisfeita, tinha ótimos amigos. Tinha tido um casamento maravilhoso.
No entanto, quando Peter abriu os braços, pulei para dentro deles.
Não antes de dar uma espiada no Google, claro.
Depois de confundi-lo com vários outros, vi que tinha escrito dois livros sobre exploração sexual. E fora testemunha no processo judicial de mais de uma mulher que sofrera violência. Um ativista em nome das mulheres? Aquilo era alguma pegadinha feminista? Há pouco tempo, ele fez uma caminhada no Grand Canyon. Mandou a foto de si mesmo em uma canoa. Era bem bonitão.
Depois de consultar minha amiga Jessie, que é muito boa em fazer julgamentos e aprovou o e-mail dele, escrevi de volta. Esperava que tivesse saído algo charmoso, embora tivesse o cuidado de comentar que nunca faço caminhadas, a não ser pelo Greenwich Village, à caça de um pãozinho bom. Peter parecia ser extremamente interessante, mas nem a pau eu ia chegar perto do Grand Canyon.
Em questão de dias, já trocávamos vários e-mails ao longo do dia. Eu me lembro de ter pensado que não adiantava nada tentar ser outra coisa que não eu mesma e, por isso, fui bem sincera sobre minha vida, minha perda, as complicações da sobrevivência, e ele respondia à altura.Ali estávamos nós, como Joe Fox e Kathleen Kelly em “Mensagem Para você”, abrindo nossos corações através de e-mails. Ou seria como “Sintonia de Amor”, já que morávamos de lados opostos do país?Depois de umas duas semanas, ele escreveu o inevitável: “Delia, acho que a gente devia se falar por telefone.
"Depois de 54 anos, nós nos apaixonamos; cinco meses depois, eu descobri que estava com leucemia", conta a roteirista. Foto: Reprodução Facebook
"Depois de 54 anos, nós nos apaixonamos; cinco meses depois, eu descobri que estava com leucemia", conta a roteirista. Foto: Reprodução Facebook
“Não demorou e passávamos horas conversando, tarde da noite. Nada de FaceTime ou Skype, apenas o bom e velho telefonema, vozes se conectando da forma que acontecia quando eu era jovem. Ele foi de carro até Nevada para trabalhar na campanha de Hillary Clinton e conversamos durante as quatro horas que levou para chegar lá e outras quatro da volta. Eu não conseguia pensar, nem escrever, nem dormir. Percebi que estava me apaixonando. Tenho 72 anos de idade, como podia ser? Tudo isso girando na minha cabeça antes de Peter dizer: “Delia, acho que devemos nos encontrar.”No fim de semana seguinte, ele veio para Nova York.
No dia do nosso encontro, fiz uma escova que ficou ótima. Passei tempo demais pensando no que vestir. Durante o jantar, sentia a língua travada. Acho que só consegui perguntar qual era sua cor favorita. Meu cérebro estava embotado por sua presença e pelo fantasma do meu marido, que certamente só haveria de querer me ver feliz, mas, ainda assim…
Quando saímos do restaurante, Peter me beijou. Na esquina da Bowery com a Houston, que fique registrado para sempre.Na manhã seguinte, entrei em pânico. Tínhamos combinado um encontro no Washington Square Park. Eu não conseguia ir. Liguei para a Jessie. “Ele anda de mochila”, disse a ela.”Todo homem no norte da Califórnia anda de mochila. Vai lá para o parque”, mandou.Peter e eu nos sentamos em um dos bancos e conversamos durante horas. Eu estava morrendo de medo. Na nossa idade, a morte está sentadinha ali, bem na nossa frente. Se esticar o braço, você encosta nela. E eu me lembro de ter dito, daquele jeito que as pessoas falam coisas que querem dizer, mas não conseguem: “Ninguém deveria ter que passar pelo que passamos duas vezes. Se eu ficar doente, eu lhe dou permissão total e absoluta para me deixar.”Ao que Peter respondeu: “Eu jamais faria isso.”
Não, não é comédia romântica. De comédia, pelo menos, não tem nada.Na sinceridade absoluta necessária na nossa idade, eu disse a Peter que tinha células anormais na medula, descobertas em uma biópsia feita sete anos antes, mas a cada seis meses eu tinha consulta com a Dra. Gail Roboz, diretora do setor de leucemia do Weill Cornell Medicine, que fazia um exame de sangue e me dizia que estava tudo bem. Peter não se mostrou preocupado.Em questão de semanas depois do nosso primeiro encontro, já fazíamos longas viagens juntos, incluindo uma para os confins do Grand Canyon. Aí fui fazer o meu exame de sangue costumeiro, em nove de março, e descobri que estava com leucemia.Era LMA, leucemia mieloide aguda, bastante agressiva. A médica disse que eu teria que começar a quimioterapia na semana seguinte, no hospital, com CPX-351, remédio que ainda está em triagem clínica e não foi aprovado pelo FDA.Leucemia. LMA. Minha irmã morrera dessa doença.
Só que não era bem a mesma, segundo a médica. Por causa dos cromossomos anormais e mutações, ela se comporta de maneira muito diferente de um paciente para outro. Em sua opinião, a minha versão não era igual à de Nora e, por isso, eu era uma boa candidata ao CPX-351. Foi por esse motivo que consegui o remédio, através do programa especial de acesso compassivo do Weill Cornell.Fiquei extremamente grata, mas queria tanto que esse remédio, ou outro, mais adequado a Nora, já existisse quando ela estava doente. Mais do que nunca, senti uma solidão muito grande.
E como minha irmã, comecei a mentir. Contei um monte de invencionices para as pessoas que amo, as pessoas com quem trabalho, para explicar por que o roteiro não tinha ficado pronto, por que tinha que faltar aos compromissos. Só que sou péssima; dizia qualquer coisa que me viesse à cabeça. Cheguei a pegar emprestada a doença ocular de uma amiga. A única coisa que pensava era que se contasse para alguém e esse alguém contasse para outro, minha doença se tornaria pública, mais ou menos do tipo: “A irmã dela morreu; ela está morrendo também”.Eu tinha que proteger minha esperança.Peter chegou um dia depois do diagnóstico. Sentado à mesa do café, enquanto eu fazia rabanada, ele disse: “Acho que devíamos nos casar.” E se levantou. “Casa comigo?”.
“Caso.”Não foi uma decisão muito prática, mas nós dois sabíamos que a doença nos ajudou a reconhecer ainda mais claramente o sentimento que nos unia. Na segunda, pegamos os papéis e compramos um anel. Na terça, dei entrada no hospital.”Queremos nos casar”, dissemos à Dra. Roboz que, por acaso, conseguiu organizar tudo. Lemos nossos votos, escritos por Peter, que falavam sobre milagres. Cheryl Fox, a capelã do hospital, nos declarou marido e mulher no refeitório do hospital, no 14º andar. Tinha feito uma sessão com o CPX-351; faltavam mais duas.Peter tirou licença e passou a dormir no hospital comigo. Em nenhum momento se mostrou desanimado ou para baixo. Nenhum.
Uma estadia hospitalar longa é como estar no meio de um túnel; pessoas indistintas vêm e vão para checar seus sinais vitais, as refeições chegam e você não tem um pingo de fome, além de ter que se forçar a caminhar pelos corredores para manter a força. O medo e a esperança brigam pelo espaço no seu coração e na sua mente. Toda noite, antes de adormecer, via Peter sentado na minha frente, lendo, esperando que eu fechasse os olhos para poder descansar.Vinte e cinco dias depois, tive alta. Fiz uma última biópsia de medula e recebi o resultado oficial: eu estava em remissão.
Remissão, que palavra fantástica de se ouvir.Uma semana depois, já voltara a escrever. Peter e eu fomos à ópera, mas eu continuava a evitar os amigos e a família. Quando via pessoas que me eram queridas, oferecia uma versão da minha vida que não existia (cheguei até a omitir o casamento – não dava para explicar!).Esse sigilo todo se tornou um peso tão grande que acabou me isolando. Simplesmente não tinha razão de ser.E torço muito para que o FDA aprove esse remédio. Ele tem que estar disponível para todos os que dele possam se beneficiar.
Tenho a obrigação de dizer.Olho para Peter e fico imaginando como esse milagre aconteceu conosco. Graças à minha irmã, claro. Ela tinha visão e suspeitou, 54 anos atrás, que fomos feitos um para o outro (“FUPO”, como uma personagem diz em “Sintonia de Amor”). Que bom que ele lê o New York Times. Que bom que ele tem um coração generoso que não lhe cabe no peito. Cheguei a mencionar que CPX-351 não faz o cabelo cair? Imagino que poderia dizer que isso não é importante quando a questão é de vida ou morte, mas a queda de cabelo é um golpe e tanto. É um desgosto. Faz diferença, sim. Tudo fez. Principalmente o amor.
(Delia Ephron é autora, mais recentemente, do romance “Siracusa”.)