Conheça a médica que salvou centenas de crianças com câncer
Amanda Milléo
23/01/2019 09:00
"A relação do oncologista pediátrico com os pacientes perdura por anos, mesmo depois do tratamento". (Foto: Camila Hampf Mendes / hospital Pequeno Príncipe / Divulgação)
Crianças diagnosticadas com câncer no Brasil chegam a ter 80% de expectativa de cura, atualmente. A chance é especialmente grande entre aquelas que recebem diagnóstico precoce e têm acesso aos tratamentos mais adequados. Em 1970, porém, quando Flora Mitie Watanabe, uma das primeiras médicas a trabalhar com a especialidade de oncologia dentro da pediatria, o cenário era bem diferente.
“Na metade da década de 1970 não tínhamos tratamento específico, então as crianças com leucemia e outros tumores que chegavam no hospital acabavam morrendo. Aí o dr. Eurípides [Ferreira de Paiva, médico hematologista e primeiro a realizar transplante de medula óssea no Brasil] chegou e falou: ‘leucemia tem cura sim, a gente faz um transplante de medula óssea’: foi como se abrisse um mundo totalmente novo na medicina”, lembra a médica, uma das primeiras oncopediatras do Brasil.
Flora, que hoje tem 68 anos, conta os desafios da época que começou a trabalhar na área, quando até encontrar os pacientes pelo hospital era difícil. “Eu via que uma criança havia operado um tumor abdominal lá na [ala] cirúrgica e passava a visita por lá. Depois ouvia dizer sobre outra criança com suspeita de câncer, que estava na ortopedia, e ia para lá. Até conseguirmos uma enfermaria da hematologia, íamos atrás dos doentes, porque ninguém os encaminhava”, conta a médica, que trabalha há mais de 40 anos no Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba.
Na época, o atendimento era guiado pensando apenas nas três especialidades gerais: pediatria, cirurgia e ortopedia. “Se a criança recebia o diagnóstico de tumor, operava e ia embora, não existia tratamento. Se o tumor era no osso, por exemplo, nos perguntávamos: ‘dá para amputar?’ Se fosse possível, era feita a amputação. Se o tumor voltasse, aí não tinha mais o que fazer, e o paciente morria, explica.
Flora aprendeu durante a profissão a importância de sempre falar a verdade aos pacientes, mesmo nos momentos mais difíceis. “Enganar não vai funcionar, principalmente se for um adolescente. Com as crianças, quando elas já podem entender, eu olho para elas e digo: ‘fique calmo, seu exame tem essa alteração, mas está tudo certo, vamos dar um jeito’. Se a mãe está chorando, o pai apavorado, imagina a criança, né? Então eu sempre falo com ela primeiro”, revela a oncologista.
Ela lembra o caso de um menino, então com nove anos, que chegou bastante arredio e acabou virando seu amigo.
“Ele chegou para a primeira consulta, tava quieto e perguntei: ‘você não tem nada para falar?’ e ele: ‘primeiro, eu não vou tomar remédio. Segundo, não vou internar. E terceiro, não quero saber de você’. Eu respondi: ‘então está bem, você está sendo bem sincero, eu vou ser também. Primeiro, você vai internar, sim. Você é de menor e não tem como recusar. Segundo, vai tomar remédio, sim, e isso você não tem como escapar. E terceiro, não gosta de mim? Tudo bem, mas vai ter que aguentar outro médico”, diz Flora, que completa: “Ele internou, claro, e hoje é um grande amigo meu. É briguento até hoje, mas manda mensagem de saudades e querendo me ver”
Da época da faculdade, ela lembra com saudades do cirurgião que a mostrou a medicina como ela é: o dr. Antonio Camargo, então diretor do hospital São Lucas. “Ele me chamava de ‘filha’ e ensinou a mim e aos meus colegas todas as rotinas da instituição.” Para o professor, o lugar de médico era sempre no hospital.
“Ele dizia que médico tinha que ser ‘rato de hospital’ e e que não tinha isso de ‘não ter o que fazer’. Cansei de ir para o centro cirúrgico ajudar a lavar o material para aprender o nome das pinças, entender para o que se usa, quando não se usa. Foi bom, aprendia a ter disciplina. Ele era rigoroso com os estudantes e brincalhão com os pacientes”, diz a médica, que também gosta de tratar seus pacientes de forma irreverente.
A amizade com as crianças e famílias sempre mexeu com o emocional da pediatra, especialmente em épocas de fim de ano. Na tentativa de tornar a estadia dos pequenos mais confortável, ainda mais em anos anteriores à criação do Estatuto da Criança e do Adolescente [quando pais e visitantes não eram permitidos dentro dos hospitais com as crianças], Flora costumava levar as crianças que ficavam na enfermaria sozinhas para a própria casa, para curtirem as festas de Natal com os seus filhos.
“Começou, na verdade, assim: o irmão do dr. Eurípides sempre se vestia de Papai Noel e passava a visita no hospital. Um ano, alguém decidiu dar uma festa para as crianças fora do hospital, e levaram todo mundo para uma chácara. Com o tempo, as famílias começaram a vir, mas algumas crianças mais pobres ficavam sozinhas, ou das famílias que moravam em outras cidades. Eu falava: ‘coloca uma roupa bonitinha e vem comigo’. Eles ficavam lá com meus filhos, alguns até dormiam em casa”, lembra a especialista.
As práticas eram tão diferentes que, antes, quando os pais não poderiam vir buscar uma criança que recebia alta do hospital – muitos porque viviam em cidades distantes –, era a própria médica quem levava a criança até a rodoviária e suplicava ao motorista do ônibus por cuidado. “Eu dizia para o motorista: ‘olha, é o seguinte, eu sou médica, aqui estão meus documentos, essa criança tem que ir para tal lugar e, quando chegar lá, o senhor desce com o menino e espera Fulano vir buscar’. Hoje eu não teria mais coragem, mas na época, se não fizesse assim, a criança ficava internada e não ia para casa. Sempre deu certo, o anjo da guarda sempre protegeu”, diz.
Infância na lavoura e dom para cuidar
A infância de Flora foi na lavoura. Seus avós imigraram do Japão fugindo da guerra, passaram por São Paulo e pelo litoral do Paraná até se estabelecerem na região metropolitana de Curitiba. Ainda criança, uma madrugada mudou o destino da família. Seu avô fez todos levantarem e irem proteger a plantação de tomates com peças de roupas, lençóis e toalhas. Naquele ano, a geada veio forte e acabou com as plantações de todos os vizinhos, menos a de sua família. O dinheiro da safra garantiu a melhora de vida das gerações futuras.
Há mais de 40 anos na profissão, Flora ainda se diz apaixonada pela escolha na pediatria oncológica (Foto: Jonathan Campos/ Gazeta do Povo/ Arquivo)
O pai da médica não pode estudar e por isso, a educação dos filhos sempre foi a prioridade: tirar notas altas na escola eram uma exigência para Flora e seus quatro irmãos. Desde a infância, sempre foram estimulados a ler. “Não tinha televisão e líamos tudo, em português, em japonês. A maior bronca da minha vó era para gente parar de ler.”
“Você podia pedir qualquer coisa para o pai, como um tênis, um sapato, mas era sempre ‘não’ a resposta. Agora, se eu falasse que queria uma enciclopédia que custava uma fortuna, ele dizia sim. Esse era o que valia para ele, o trabalho, a dedicação, o estudo”, lembra a médica.
A escolha por Medicina foi algo natural para Flora, que sempre gostou de cuidar dos outros. “Fui a primeira da família a tentar Medicina [depois, outros dois irmãos se tornaram médicos]. Fiz na Católica e, na época, estavam construindo a faculdade no Prado Velho. Meu pai ajudou na construção”, relata Flora.