Jornalista lança projeto para falar das angústias de filhos adotivos
Anderson Gonçalves, especial para a Gazeta do Povo
06/01/2019 16:30
Zine aborda desafios na vida adulta enfrentados por pessoas que foram adotadas. Foto: Bigstock
“Por muito tempo, ser adotivo era um detalhe sem maior importância para mim, como ter nascido de parto normal ou cesárea, por exemplo. Na adolescência, o clima começou a nublar e, no início da idade adulta, fechou completamente. Eu me sentia imóvel, incapaz de realizar projetos ou aprofundar relações. Após horas de psicanálise, percebi que a nuvem que me impedia de ver a luz poderia ser dissipada, mas para isso eu precisaria adentrar na penumbra de um passado que sutilmente negava.”
O texto foi escrito pelo jornalista Alexandre Lucchese, um paranaense nascido em Realeza, no sudoeste do estado, que desde os 18 anos mora em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Foi no pequeno município de aproximadamente 17 mil habitantes que a história por ele relatada começou. Adotado ainda recém-nascido, sempre soube dessa condição e teve um ótimo relacionamento com os pais adotivos. Quanto aos biológicos, não tinha curiosidade em conhecê-los. Até perceber que algumas de suas angústias tinham origem justamente nesse passado que ele desconhecia.
A experiência de ser adotivo e partir em busca de suas origens fez com que há cinco anos Alexandre decidisse se aprofundar no assunto. Ele começou a pesquisar não apenas na literatura e nos estudos, mas, principalmente, buscar pessoas que compartilhavam da mesma experiência de vida. Daí nasceu o projeto Vida de Adotivo, cujo primeiro grande passo foi dado no último dia 11 em Porto Alegre, com o lançamento de três zines, cada um trazendo o depoimento de um adotivo: como foi a descoberta, as alegrias, dúvidas e questionamentos que a vida lhes trouxe.
O texto reproduzido no início da reportagem é o que abre os zines e, de certa forma, resume o que levou o jornalista e escritor a investir no projeto. À Gazeta do Povo, ele contou que o fato de ser adotivo nunca teve muita relevância até a casa dos 30 anos de idade, quando começou a fazer psicanálise. “Percebi que muitas travas de relacionamento tinham a ver com minha origem. Por não falar, não olhar para trás, não se apropriar da minha história, não conseguia construir um futuro”, diz Alexandre.
Ele foi, então, em busca da família biológica. E, por mais que durante muito tempo ele não imaginasse, conhecê-la fez muita diferença. “Ao negar o passado, não observar isso, a gente acaba vivendo uma vida de mentira, não faz contato com a realidade pela qual passou. À medida que fui falando sobre isso e me apropriando dessa história, e principalmente quando conheci minha família biológica, fui me sentindo com os pés no chão. Me senti mais dono da minha própria história.”
Após conhecer a própria história familiar, Alexandre sentiu necessidade de discutir melhor o assunto. Iniciou pesquisas e, a partir de grupos de apoio à adoção, começou a manter contato com outros filhos adotivos, disposto a ouvir suas histórias. “Minha família adotiva recebeu bem esse movimento, sou de uma família que me possibilitou ter uma educação e buscar auxílio na psicanálise. Mas imagino quem não tem essa rede de apoio, quando a família adotiva não compreende bem e a pessoa não tem alguém para amparar”, relata.
Desse trabalho de pesquisa nasceram os três depoimentos que fazem parte do Vida de Adotivo. Cada um com uma história de vida diferente. Uma das entrevistadas foi a psicóloga Renata Pauliv de Souza, que mora em Curitiba e, junto com a mãe adotiva, Hália Pauliv de Souza, atua na ONG de apoio à adoção Recriar, e também é autora de livros sobre o assunto. Ela foi adotada após quatro dias no hospital. “É só isso que eu sei dessa época”, contou no depoimento.
Renata tem uma irmã adotiva e aguardava a adoção de uma filha, que iria se juntar a outras duas consanguíneas. Sem jamais ter conhecido a família de sangue, teve na terapia, nos estudos como psicóloga e no trabalho junto aos grupos de adoção ferramentas de apoio.
“Para mim, o mais marcante nos filhos por adoção, de uma forma geral, inclusive em mim, é a matriz da rejeição, do abandono. Vejo adotivos que, ao terem a sensação da possibilidade de abandono, começam a reagir, às vezes se afastando, às vezes brigando, cada um do seu jeito. Mas sempre há uma reação, mais rápida que nossa conscientização daquilo. E, veja bem, não precisa ser um sentimento de rejeição: a mera sensação da possibilidade já pode ser suficiente para desencadear uma reação”, diz.
Outro entrevistado do projeto, Eduardo Ayub, soube que era adotivo aos cinco anos pela irmã mais velha, que pediu que não comentasse nada com os pais. Eles faleceram sem jamais tocar no assunto. “O fato de ter sido deixado pela minha mãe no hospital também pode dificultar os vínculos, no sentido de pensar que posso ser abandonado novamente. Hoje tenho clareza de que não lidei bem com situações de ruptura”, revelou Eduardo em seu depoimento, acrescentando que trabalhou a questão em sessões de hipnose. “Entrei em contato com sentimentos que eu não imaginava que tinha.”
O terceiro depoimento é de Wesley Marlon, que tem a história mais peculiar. Negro, viveu em um abrigo de Indaiatuba (SP) até os 11 anos de idade, quando foi adotado por um casal homoafetivo. Vivendo na Alemanha desde o ano passado, ele contou que, antes de viajar, esteve na cidade de origem, onde visitou irmãos, primos e a avó, que não via desde a infância. Há quatro anos, os pais adotaram outro menino. “Está sendo tudo mais fácil. Como meu pai gosta de dizer, eu fui o ponta de lança. Tudo que eles estão passando, já passaram comigo. O caminho já foi aberto. No futuro, quero constituir uma família diferente, ter filhos biológicos, mas também adotar duas crianças mais velhas. E vou dar a elas tudo que estiver ao meu alcance.”
Orientação aos pais
No Brasil, o número de adoções vem crescendo a cada ano. Segundo o Cadastro Nacional de Adoção, coordenado pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, foram 2.001 adoções no ano passado, mais que o dobro de 2015, de 955. Desde 2016, o Paraná é o estado com mais registros de adoção. Ainda assim, existe um número grande à espera da finalização do processo de adoção.
9,2 mil: número de crianças e adolescentes cadastrados à espera de interessados ou aguardando o processo de adoção
Com o número de adoções cada vez maior, torna-se ainda mais necessário um trabalho de apoio tanto aos pais quanto aos filhos adotivos, de modo a evitar traumas futuros. Para Maria Cristina Neiva de Carvalho, professora da PUCPR e que trabalha há 25 anos com psicologia jurídica, é fundamental tratar a adoção como mais um acontecimento na vida das pessoas. “Algumas famílias adotivas pensam que o melhor é esquecer os pais biológicos, procuram negar, querem até mudar o nome. Mas essa foi uma parte da vida do adotivo, que não pode ser ignorada”, afirma.
“Já vi algumas situações de revolta, quando a criança acaba descobrindo sozinha que foi adotada e acredita que viveu uma mentira. E as consequências disso podem ser o afastamento da família ou, então, uma busca obcecada pelos pais biológicos”, observa a psicóloga. Por isso, ela aponta como essencial o trabalho de orientação aos pais antes da adoção, assim como o acompanhamento da família após a chegada do filho. “A primeira coisa a se perguntar aos pais é por que estão querendo adotar, qual é a motivação, se não é apenas para satisfazer um desejo pessoal. O princípio da adoção é garantir uma família para a criança, e não uma criança para a família.”
Para isso, as varas de Infância e Juventude ministram cursos preparatórios para os interessados em adotar. Existem ainda grupos de apoio à adoção, que atuam na orientação dos interessados, debatem políticas para o setor, prestam auxílio e promovem o acompanhamento de famílias de adotivos. “É um trabalho que vem sendo feito, mas, infelizmente, ainda está longe do ideal”, observa Maria Cristina, que atenta para os muitos casos de crianças e adolescentes que acabam sendo devolvidos após serem adotados.
Impactos da adoção
Um dos objetivos de Alexandre Lucchese ao criar o projeto Vida de Adotivo era trazer à tona um debate pouco visto tanto na mídia quanto no meio acadêmico. De acordo com ele, são poucos os estudos que tratam a adoção do ponto de vista dos filhos adolescentes ou adultos. Uma estatística citada por ele é da American Academy of Pediatrics, de 2013, segundo a qual o número de tentativas de suicídio entre adotivos é mais de quatro vezes maior do que entre pessoas que não foram adotadas.
“Tenho convicção de que se esse assunto fosse debatido de maneira mais ampla, muitas pessoas não abandonariam a vida para escapar de suas angústias”, pondera o jornalista.
Nos Estados Unidos, o Child Welfare Information Gateway, serviço de informações sobre a infância do Departamento de Saúde do governo, divulgou em 2013 um estudo sobre o impacto da adoção em pessoas adotivas. Entre as conclusões do estudo está a de que “a experiência da adoção pode contribuir com circunstâncias que a pessoa adotiva terá de superar, como sentimentos de perda e luto, questionamentos sobre identidade ou a falta de informações sobre o histórico de saúde.”
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Depoimentos
Confira alguns trechos dos relatos que fazem parte dos zines Vida de Adotivo:
“É uma incógnita o motivo pelo qual meus pais adotivos nunca falaram para mim sobre essa história. Nesses tempos em que eu estava procurando, conversei com várias pessoas da família. Todos me disseram que esse era um assunto lacrado. Eles eram mais velhos, deviam ter algum receio. Mas acho que minha irmã falou de uma forma tão bem falada que eu fiquei tranquilo, pelo menos conscientemente. Mas a gente sabe que o nosso inconsciente é poderosíssimo.” Eduardo Ayub
“Eu costumo dizer que faltam os tijolinhos iniciais no muro de uma pessoa adotiva. Para uma pessoa não adotiva, todos os tijolos estão lá. Mas na nossa construção, faltam alguns. Sei que quando minha mãe me recebeu, também ganhou um pedaço de papel no qual estava escrito o nome da genitora, data, hora e local do meu nascimento. Isso é o que eu sei do meu histórico, não é como hoje, que é possível saber o que desencadeou a destituição do poder familiar. Não sei nada dessas coisas.” Renata Pauliv de Souza
“Da minha mãe, ficaram boas lembranças, apesar de termos vivido coisas que não foram agradáveis. Era alguém que não terminou os estudos, que não teve oportunidades melhores, que veio da roça. Mesmo que ela não tenha conseguido nos oferecer muita coisa, foi o suficiente. Ela nos deu tudo que esteve ao alcance dela, já meu pai nem tentou dar nada. Ele não quis assumir o caso com minha mãe, mesmo tendo dois filhos com ela. Eu o ignoro por causa disso.” Wesley Marlon
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Produção artesanal
Segundo Alexandre Lucchese, os três zines são apenas a primeira parte do projeto Vida de Adotivo. Foram confeccionados 120 exemplares, produzidos de maneira artesanal, mesclando serigrafia, xerox e costura. As ilustrações das capas foram feitas pelo artista visual Felipe Constant. De acordo com Alexandre, que tem planos de futuramente escrever um livro sobre o tema, qualquer valor arrecadado na venda dos zines que exceda os custos de produção será doado para instituições que apoiam a adoção. Os interessados podem acompanhar o projeto pela página Vida de Adotivo no Facebook ou pelo perfil @alexandrelucchese no Instagram. Quem quiser adquirir os zines (ao custo de R$ 21), saber mais sobre a iniciativa ou relatar sua experiência relacionada a adoção pode entrar em contato através do email alexandrelucchese@gmail.com.