“Minha cicatriz é a marca da experiência mais intensa da minha vida”
Bruna Covacci
23/09/2016 19:00
Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo | Gazeta do Povo
Na literatura cor-de-rosa as mulheres se apaixonam pelos homens com cicatrizes, talvez por parecerem indicar que aqueles indivíduos carregam alguma grande e emocionante história. Com relação às marcas voluntárias, as tatuagens, há motivações fascinantes que fazem pessoas registrarem no corpo o que viveram: o nascimento de um filho ou o renascer após sobreviver a um acidente. Para quem nasce com uma marca bem visível, a luta contra o preconceito é grande, mas ela acaba se tornando parte inseparável de sua personalidade.
Quando a vida te marca para sempre
O músico Caio Weber, 22 anos, cresceu com algumas dores, principalmente na região lombar. Nada que o deixasse preocupado. Até que em 2013, antes de fazer um show em Ponta Grossa, teve um mal súbito. “Começou com um formigamento nas mãos, atingiu a nuca e desceu para as pernas. Resolvi tomar um ar para ver se melhorava. Olhei para o meu amigo dizendo que eu ia morrer”, lembra. Desmaiou e só acordou em uma maca de hospital. Os médicos batiam na sua perna com um martelo, e o reflexo era zero. Ele não sentia nada da cintura para baixo. No dia seguinte, sem saber o que tinha, foi transferido para um hospital em Curitiba. Passou uma semana até se ter um diagnóstico completo: uma malformação arteriovenosa que causou hemorragia medular naquela ocasião.
“Precisei passar por uma cirurgia em que fizeram praticamente um processo de reconstrução arterial”, diz. Por ser na região lombar, as chances de Caio perder os movimentos eram de 90%, assim como a de não resistir ao procedimento. A melhor notícia foi ter passado por isso sem sequela alguma, apenas uma cicatriz nas costas que ele considera um motivo de muito orgulho. “É a marca da experiência mais intensa da minha vida e que me fez aprender muito”, comenta. Como uma analogia com as tatuagens que tem no corpo – são sete ao todo –, ele comenta que a vida foi criteriosa ao lhe dar tal marca. “As coisas que eu escolho têm um gosto diferente de tudo o que fui obrigado a passar: a cicatriz é a forma como a vida me fez ser, nunca vou tatuar em cima dela”, diz.
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Cicatriz sem sofrimento, e uma marca redentora
Para Lucy Amélia Sales dos Santos, 59 anos, sua cicatriz no rosto é praticamente invisível. Ela tinha um ano e dois meses quando saía de casa e tropeçou. “Dei com o rosto no chão. Cortei bem perto dos olhos e levei sete pontos. O médico precisou dar uma anestesia mais leve, me mexi bem na hora em que ele estava me ‘consertando’, acabei rasgando um pouco mais”, conta.
Ela diz que nunca enxergou sua cicatriz. É como se ela não existisse, já que sempre fez parte do que ela é. Na infância não sofreu nenhum tipo de bullying, mas na adolescência, um dos seus primeiros namorados a apelidou de “rosto cortado”. Ela fala que muitas pessoas vêm perguntar com muito cuidado, para não magoá-la, qual a história da sua marca. “As pessoas costumam associar cicatrizes a sofrimento, a dor”, diz.
Assim como no rosto, Lucy tem uma marca causada por uma cesariana e outra bem recente, que significa muito para ela, embora não apareça para os outros. É o resultado de uma cirurgia feita nojoelho há quatro meses. “Ela representa um momento bem difícil. Depois que me aposentei, transformei minha vida para nadar. Tudo mudou. Após nove anos treinando e competindo, precisei ficar parada. Essa cicatriz vai me permitir voltar à ativa. Vai trazer minha felicidade de volta”, comenta. As rugas também são suas novas companheiras trazidas pelo tempo. “Faz parte. É a vida de cada um, ninguém consegue morrer sem rugas – a não ser que morra jovem. E nesse caso: coitado!”, diz.
“Quando você é criança as coisas que estão a sua volta têm muita influência sobre você”. É assim que a gerente de marketing Gabrielle Lucktemberg Laffitte, 26 anos, explica a relação com o hemangioma do seu braço. Quando entrou para a escola começou a reparar mais na sua mancha. O motivo? Passou a ser chamada de “dálmata” pelos colegas. Para ela, seus pais tiveram um papel muito importante na sua relação com a marca, pois nunca trataram a mancha como se fosse algo incomum ou um problema. Faziam tudo com naturalidade. “Andando na rua, a mãe de um menino não deixou ele me encostar, dizendo que o que eu tinha era contagioso”, lembra. Quando as crianças perguntavam o que ela tinha no braço, ela falava: “é meu charme”.
Mas Gabrielle entrou em crise aos sete anos. “Eu não a queria mais, então meus pais concordaram em me levar a médicos que, com laser, poderiam tirar a marca. Era uma escolha minha”, conta. A primeira tentativa deu errado e queimou a menina. Com uma segunda tecnologia as coisas saíram um pouco melhor. “Só que quando estava tudo indo bem comecei a me questionar. Eu não queria perder parte do que eu era. Aí desisti”, diz. Tudo se tornou natural com o tempo. Ao escolher a foto do seu convite de 15 anos, o fotógrafo perguntou se ela queria tirar a marca no Photoshop. Ela não quis. Sem reparar, optou por uma em que a marca aparecesse. “As pessoas me paravam e diziam: ‘que legal que você escolheu essa foto.’”, diz. Ela não se imagina sem a mancha, principalmente porque não vê como nada diferente, mas sim como parte do que ela é.
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Coleção de vitórias
Foram nove cirurgias, oito delas no abdome. A estudante Elaine Weber, 41 anos, descobriu um tumor no útero aos 26 anos de idade e fez uma histerectomia total. Passou por várias recidivas de tumor, no intestino delgado e no ovário. Ao longo de sete anos passou por sete cirurgias. Além das marcas psicológicas, as cicatrizes deixaram lembranças dos momentos marcadas em seu corpo. Esteticista por formação, ela encara as cicatrizes como um aprendizado e não tem problema de autoestima por elas. “Sou muito bem resolvida. Acho até engraçado quando vejo alguém que se importa. Fico feliz quando me olho no espelho”, diz.
Casada há 23 anos, passou poucas e boas ao lado do marido, Ademar. “Aproveitei que ele estava viajando para me acostumar primeiro com o visual de cabelo raspado. Quando ele chegou, disse: você está linda, nunca mais deixe o seu cabelo crescer”, conta. O companheirismo fez com que a estudante tomasse uma decisão: ao completar 18 anos de união ela tatuou o nome dele, assim como a data do casamento. “Quando me perguntam o que aconteceria se a gente se separasse, a minha resposta é muito simples: nada vai apagar o que a gente viveu juntos”,diz.