“Eu quero! Eu quero! Eu quero”: como dizer não a uma criança consumista
RBS, por Gustavo Foster
12/03/2019 12:00
Na volta, a gente compra. A frase talvez seja uma das mais comuns na relação entre pais e filhos, mas pode não ser a mais indicada para o momento em que as crianças começam a desenvolver o seu lado consumista. Foto: Bigstock
Não é só no passeio pelo shopping ou nos corredores do supermercado que os pequenos veem despertada (prematuramente) a sua veia gastadora.
Com a volta às aulas, roupas, materiais escolares e mesmo a redação de viagem das férias podem causar nas crianças o desejo de ter mais – sensação que é atiçada pela exposição cada vez mais frequente de filhos à publicidade.
Seja direta, por meio de comerciais de TV, outdoors e mídias tradicionais, seja mais sutil, como em vídeos de youtubers que testam brinquedos, os chamados “unboxing”, que mostram produtos sendo tirados da caixa – em janeiro deste ano, o Ministério Público de São Paulo pediu a retirada de vídeos de youtubers mirins por “propaganda velada”.
Para os especialistas escutados pela reportagem, é consenso que a melhor maneira de lidar em situações deste tipo é a conversa.
Seja rica ou pobre, não há como (e não é saudável) uma família ceder a tudo que uma criança pede – e quanto mais cedo for explicado que, além do “sim”, existem o “não” e o “talvez”, melhor para o desenvolvimento da personalidade da criança.
“Quando os pais dizem não, há diversas reações possíveis dos filhos. Quem nunca viu uma criança se atirando no chão e esperneando por que quer certa coisa? Isso pode acontecer por uma incapacidade de lidar com a resposta negativa, que precisa ser trabalhada, ou por ser uma fase no desenvolvimento da criança, que é muito comum. O importante é falar a verdade, porque isso vai dando os contornos da realidade com que a criança vai precisar lidar, uma hora ou outra”, avalia a psicóloga Renata Kreutz, membro do Centro de Estudos e Pesquisa da Infância e Adolescência (Ceapia).
Menos tolerância, menos criatividade
A consequência de um infância sem a experiência de não ter todos os seus desejos atendidos pode ser um adulto com dificuldade de lidar com frustração, pouca flexibilidade e profundidade no pensamento.
Além disso, pode ter dúvidas profissionais persistentes, dificuldades na sustentação de relações amorosas, capacidade reduzida de empatia e poder reduzido de abstração – afinal, quem tem tudo na hora que quer pensa que tudo no mundo é imediato.
Para isso, a psicanalista Luciana Wickert indica expor a criança à realidade. Ou seja, se ela insiste em comprar a mochila mais cara da loja, é preciso que ela entenda que o dinheiro para as canetinhas vai faltar.
“A atitude mais interessante é não menosprezar a inteligência da criança. Explicar como funciona o consumo exagerado e o papel da mídia, ponderar as prioridades financeiras da família, estabelecer combinações e sustentar o não quando necessário são tarefas cotidianas para a núcleo familiar. As crianças estão abertas a aprender”, avalia.
Isso, de acordo com a educadora financeira Adriana Fileto, integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo (Rebrinc) e autora do livro “Cuide do seu Bolso e do Planeta” (2014), ainda gera uma semente na cabeça dos pequenos que será útil mais tarde: nem toda a satisfação precisa vir do consumo.
Que tal, em vez de comprar uma boneca nova, chamar um amigo diferente para brincar? Quem sabe, em vez de ir à Disney, conhecer a praça do outro lado da rua? Ou, no lugar de ir ao show mais bombado do mundo, aprender um instrumento?
“Normalmente, a criança olha e quer. É algo imediato. Mas mesmo pais ricos, que poderiam gastar em tudo, precisam por limites. Porque isso não tem fim, sempre tem uma boneca nova, uma moda mais legal. Mesmo a criança mais rica do mundo não vai ter todos os brinquedos possíveis. Então, o ideal é buscar satisfação em outras coisas, que não o consumo direto”, diz a educadora financeira.
Economia sem traumas
A relação da professora universitária Cris Machado,41 anos, com o dinheiro começou a mudar a partir do nascimento de sua segunda filha, Júlia, atualmente com cinco anos.
O que não havia acontecido após a gravidez de Henrique, hoje com 10 anos, foi inevitável a partir de um episódio marcante – que aconteceu quando a caçula tinha apenas um ano e meio e ainda mamava no peito.
“Eu estava assistindo TV e dando de mamar para ela, quando ela apontou para a TV e falou “mamãe, eu ‘quéio’ pi-ra-can-ju-ba”, imitando a propaganda” conta Cris, que trabalha como consultora em amamentação e assina o blog Plantão Materno.
O desejo precoce da bebê por uma marca específica de leite – que não o materno, o mais indicado para bebês como Júlia à época – praticamente obrigou Cris a repensar como lidava com a maternidade, além de ser o ponto de partida para o blog e o trabalho com consultoria.
Foi a partir da frase da filha que a professora passou a ser o que chama de “ativista de uma maternidade mais real”. O primeiro passo foi cancelar a TV a cabo, mas a mudança foi estrutural – que, por vezes, exige abrir mão de certas experiências.
Cris conta que uma das principais dificuldades foi conseguir balancear o ativismo e o bem-estar dos filhos. Como fazer as crianças entenderem conceitos de economia e finanças sem traumatizá-las?
Um dos impactos maiores foi quando Henrique entrou na escola. Cris procurava uma instituição laica e achou poucas: fez um esforço e matriculou o filho em um colégio com mensalidade alta. Ficou com o coração partido quando os coleguinhas começaram a ridicularizar o tablet do guri.
“Ele tinha sete anos e chegou em casa pedindo um iPad. A escola exigia um tablet, ele tinha um que não era o de primeira linha, e os colegas começaram a rir dele. Sou ativista, mas não podia colocar meu filho como cobaia. Não podia ver ele sofrendo e simplesmente dizer “levanta a cabeça”. Trocamos ele de escola”, conta.
É nesse equilíbrio que Cris tenta manter a veia consumista de seus filhos e, por consequência, da casa. Presentes, só em datas especiais. Mesada, contada e sem depósitos extra. Material escolar, até o limite do uso – até porque os pequenos já entenderam que podem usar o dinheiro em outros lugares. Assim, há espaço até para discutir outros assuntos com as crianças.
“Agora, pediram livros de até R$ 200 na escola. Compramos em sebo, por muito menos. E abre espaço pra outras conversas. Um dos livros veio com dedicatória de um dindo para o afilhado, e ele adorou. Ainda combinei com ele que o dinheiro que sobrou vamos usar para a festa de aniversário dele. E ele tem tão pouca ligação com o preço das coisas que sabe onde ele escolheu fazer? Em um museu”, orgulha-se a mãe.
Dicas para evitar o consumismo:
Na hora de assistir TV e se conectar ao YouTube:
– Publicidade nunca é bom para crianças, portanto, evite. – Dê preferência para canais de YouTube sem propagandas e serviços de streaming, que não têm comerciais. – Caso a criança tenha acesso a publicidade, converse sobre a real necessidade dos produtos.
Na hora das compras
– Mentir, com frases como “na volta a gente compra”, pode afetar a confiança da criança nos pais. Procure conversar. – Caso a criança já tenha capacidade de entender, converse sobre as finanças. Explique que comprar algo implica em deixar outra coisa na prateleira. – Firme um acordo antes de sair de casa. Por exemplo: vocês vão sair de casa para comprar materiais escolares, e não brinquedos ou guloseimas. – Espernear e gritar são atitudes comuns. Às vezes, um “não” vai acabar com o clima do passeio, mas paciência.