Comportamento

Os pequenos prazeres na rotina de Cristovão Tezza e sua inspiração para a vida

Irinêo Baptista Netto
13/06/2017 11:54
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Cristovão é um leitor caótico: transita por vários livros ao mesmo tempo, de gêneros diferentes: "O segredo de quem lê é ter sempre um livro à mão". Foto: Alexandre Mazzo/ Gazeta do Povo | Gazeta do Povo

O escritor Cristovão Tezza trabalha pacas. Na última década, ele publicou quatro romances inéditos, oito reedições — revistas e ampliadas por ele próprio —, dois livros de crônicas, dois de contos e um de ensaio. Quando não está trabalhando, ele vive a vida. E eu sempre quis saber como é esse viver a vida do Cristovão durante um dia comum. Numa ocasião, perguntei se ele me deixaria escrever sobre sua rotina. Ele disse sim e marcamos uma data. Eu passaria um dia inteiro com ele e reportaria a experiência.
A família Tezza é uma anfitriã generosa e já recebeu de vizinhos a atores globais e pelo menos um Nobel de Literatura, o sul-africano J.M. Coetzee, autor de “Desonra”. Eu mesmo já fiz umas 20 refeições com eles ao longo de dez anos e me gabo de conhecer a feijoada do Cristovão (ela dividiu minha vida em “antes” e “depois”). Por fazer parte desse grupo, de um jeito meio tímido, me considero um amigo. Não íntimo, mas próximo. Hoje, também sou repórter e as duas coisas se misturam um pouco neste texto.
Um dia comum na vida de Cristovão Tezza é capaz de revelar a importância dos pequenos prazeres. Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Um dia comum na vida de Cristovão Tezza é capaz de revelar a importância dos pequenos prazeres. Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
É quarta-feira. Chego às 8h45 da manhã. Beth e Felipe estão à mesa, terminando de comer. Aceito uma xícara de café que acabou de ser passado e ainda está quentinho. Cristovão decide me acompanhar. Café é uma das bebidas favoritas dele. “Minha mãe, a dona Elin, tomava um litro e meio de café por dia e viveu até os 90 anos. Tinha uma memória excepcional”, diz. “E fumava. O problema dela foi o cigarro.”
Hoje, o escritor consome algo em torno de um litro de café por dia. Os cigarros, ele largou há mais de duas décadas.
O assunto do café da manhã foi o filme “O Filho Eterno” e eu queria muito saber o que o autor do livro tinha achado da adaptação que fizeram para o cinema.
“Eu me sinto muito próximo do tema. Não consigo avaliar”, diz Cristovão. Deve ser como ouvir alguém falar de uma pessoa muito chegada a você — de um filho — e ter de encaixar aquilo que estão dizendo no meio de todas as informações que você já tem sobre a pessoa. Às vezes isso é desconfortável, mesmo quando o que se ouve é bom.
Aos 64 anos, Cristovao Tezza é tem um bom humor poderoso e nunca reclama da vida. Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Aos 64 anos, Cristovao Tezza é tem um bom humor poderoso e nunca reclama da vida. Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Cristovão e Beth querem saber o que eu achei do filme. Digo que gostei, na verdade gostei muito. Achei sensível e humano, o contrário de melodramático. O filme lida com um tema difícil com mais perspectiva e humanidade que qualquer coisa produzida no cinema ou na tevê brasileiros em 2016.
A adaptação, claro, tomou várias liberdades em relação ao livro, que, por sua vez, já era uma recriação literária inspirada nas experiências do autor. Em alguma medida, todo livro de ficção, toda história inventada, parte das experiências do autor. O que significa que você pode ler a história imaginando que parte dela tem a ver com fatos, mas ela é inteira literatura. É um romance autobiográfico.
O problema é quando leem o romance e acham que estão lendo sobre o Cristovão. Ou pior, ao ver o filme no cinema, que estão vendo a vida dele na tela. Não.
Cristovão tem 64 anos e um bom humor poderoso. Nunca o ouvi reclamar da vida. Ele pode fazer críticas à política, ao futebol e à literatura. Reclamar, nunca. Imagino que, se um terremoto violento abalasse Curitiba, ele seria como aqueles japoneses de semblante tranquilo que calmamente retiram suas coisas do meio dos escombros, prontos para limpar a sujeira e reconstruir a vida.
Cada pessoa é única
Felipe, o filho de Cristovão e Beth, termina de comer, dá um beijo na mãe e se prepara para sair. É dia de ir ao ateliê onde ele e outros alunos com síndrome de Down praticam arte. Uns pintam, outros fazem mosaicos. As obras têm um capricho evidente e é uma forma que os artistas têm de fazer um dinheirinho.
Os downianos têm níveis diferentes de desenvolvimento. Alguns são muito articulados e mais independentes. Outros, como o Felipe, ficam para sempre numa espécie de infância. “A estimulação precoce, o estímulo permanente dos pais, tudo isso é fundamental, mas há um limite genético em cada caso”, explica Cristovão. “Cada pessoa é única.”
O Ateliê Criação fica em Santa Felicidade, numa área arborizada e tranquila. “Olhando as árvores lá na frente”, diz Cristovão, enquanto dirige, “sempre tenho a impressão de que a cidade acaba nelas”. É uma paisagem bonita, ao menos para mim que raramente saio do Centro de Curitiba.
Somos recebidos pela professora Márcia Miranda. Ela e a irmã, Josinês, são responsáveis pelo ateliê. Márcia acompanha o Felipe há mais de 20 anos e ele, hoje com 36, é um aluno talentoso. Seus quadros podem ser classificados de naïf, são bidimensionais, têm cores vivas e personagens inspirados nos desenhos animados que adora. Felipe, hoje, anda curtindo um clássico: “Tom & Jerry”.
Chego perto do quadro em que ele está trabalhando e vejo um submarino enorme e amarelo (ele manja dos Beatles, mas manja mais do Atlético Paranaense). “Que quadro legal”, digo. Compenetrado, sem levantar a cabeça, ele responde: “Eu sei”.
Conversamos mais um pouco, inclusive com outro aluno, chamado Irineu, um especialista em mosaicos que ficou entusiasmado de encontrar um xará.
Um ponto de passagem ou o destino?
Deixamos o ateliê para ir ao supermercado. A ideia é comprar os ingredientes que faltam para o almoço.
Para algumas pessoas (eu me incluo entre elas), ir ao mercado é uma experiência. É o momento de pensar no que comer, comprar os itens para sobreviver pelos próximos dias. É uma versão metropolitana de sair à caça. É a chance de descobrir sabores novos de produtos conhecidos ou experimentar produtos desconhecidos. É a hora de assumir riscos, de ler rótulos, de encarar o supermercado como um destino e não como um ponto de passagem.
Para o Cristovão, não é assim.
No mercado, ele é um homem com uma missão. Ele não olha para os lados. Só para frente. Pão. Alface. Tomate. Abobrinha. Cebola. Torradas. Uma cervejinha.
Na parte das frutas e verduras, procuro ajudar pegando os sacos plásticos e pesando o que Cristovão coloca no carrinho. As pessoas olham para nós com interesse. Não dá para saber se somos pai e filho — eu sou só dois anos mais velho que o Felipe —, parceiros ou amigos. Digo isso para o Cristovão e ele se diverte.
Súbito, ele parece muito animado.“Cara, eu adoro esse tipo de coisa”, diz, e me mostra uma bandeja de iogurtes gregos com um aviso “Leve 6 Pague 5”.
O mercado está quase vazio: só nós e algumas senhoras de cabelo muito branco. Terminamos de pegar os ingredientes que faltavam para o almoço — Beth vai fazer um frango assado com ratatouille e arroz (que ficaram deliciosos) — e partimos para o caixa.
Cristovão acabou de voltar de uma viagem para a Noruega. Quando soube que o país lançaria uma tradução de “O Professor”, decidiu viajar para lá e disse que Oslo lembra muito Curitiba. “Lá, eles têm duas instituições: Ibsen e Munch”, diz, em referência ao dramaturgo de “Casa de Bonecas” e ao pintor de “O Grito”.
Na viagem, não saiu de Oslo para conhecer as redondezas. E descobriu que, hoje, são os suecos que querem trabalhar e viver na Noruega e não o contrário. Ele experimentou a aquavit — o destilado mais famoso do país, um tipo de pinga norueguesa — e não gostou muito. “Lembra anis.”
Em casa, ele me pergunta: “Aceita uma cachacinha?”. Sou obrigado a dizer sim. Não se trata de uma cachaça qualquer. É uma dessas com preço de uísque 12 anos. Tomo um golinho e ela é surpreendentemente macia. Mal se percebe o álcool.
Cristovão é um fã de tecnologia (algo que poucos sabem). Na foto, ele se diverte com o celular.Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Cristovão é um fã de tecnologia (algo que poucos sabem). Na foto, ele se diverte com o celular.Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Beth me conta que Ana, a irmã do Felipe, almoçaria com a gente, mas teve de cancelar por causa do trabalho (ela é professora assim como os pais foram). “O Filho Eterno” é dedicado a ela. Ana é casada com o João e mãe de um menino, o Antônio, primeiro neto de Cristovão.
Fico de pé na entrada da cozinha para continuar a conversa enquanto Cristovão ajuda Beth em alguns detalhes. Embora tenha baixa visão por causa de uma retinose, Beth é senhora absoluta da casa e tem uma memória prodigiosa. Sempre que volta do mercado, por exemplo, Cristovão lê a nota para ela saber quais são os produtos que estão entrando em casa. E ele lê uma vez só.
Sempre um livro à mão
Sobre a mesa de centro da sala e sobre o balcão do bar — um móvel pequeno em que Cristovão guarda as garrafas de cachaça —, existem pilhas de livros novos. Alguns ele comprou, outros foram enviados para ele. “Enclausurado”, de Ian McEwan; o novo do Michel Laub; o do Daniel Galera; um de Eric Auerbach sobre teoria literária…
Cristovão uma vez me disse que o segredo de quem lê é ter sempre um livro à mão. Você pode guardar um horário do dia para parar tudo que está fazendo e sentar para ler, mas também é importante ler em todas as chances que tiver: numa fila de banco, ou esperando o filho sair da escola, ou enquanto espera a água do café ferver… Para ele, num mundo feito de barulhos, “uma das armas da literatura ainda é o silêncio”.
Quando a gente começa a conversar sobre livros, Cristovão se arruma na cadeira e fala animadamente sobre o que está lendo ou acabou de ler.
No romance “A Tradutora”, ele escreveu: “parece que só conversando as coisas provam que existiram de fato, e é preciso fixá-las, porque o tempo vai arrastando-as para trás de modo que em poucos dias, meses ou anos as coisas tão sólidas à palma da mão, brutas, inteiras, vão ficando pequenas no retrovisor, viram farelo e somem para sempre, e ficamos apenas com o sopro volúvel da memória”.
Vou embora. É fim de tarde e Cristovão sai para buscar o Felipe no ateliê.
Pequenos prazeres são valiosos
O plano de mostrar um dia comum na vida de Cristovão Tezza acabou revelando outra coisa, um fato que me escapa com frequência: os pequenos prazeres são valiosos. Espero não ser o único que precisa ser lembrado disso de vez em quando— de como desejamos o que é caro, raro ou extraordinário, correndo o risco de ignorar coisas simples como uma xícara de café recém-coado.
Um frango assado com molho gostoso.
Um passeio até o fim de Curitiba.
Uma conversa sobre livros.
Boa companhia.
O escritor
Cristovão Tezza é um curitibano de Lages (SC). Nasceu em Santa Catarina, em 1952, e veio com a família para o Paraná em 1961. Ao longo da vida, viajou muito, mas sua casa fica ali, na Rua General Carneiro, em Curitiba. Todos os anos, ele promete sossegar e viajar menos, mas as oportunidades continuam aparecendo. E ele continua viajando muito. Da Escandinávia à China, passando pelos territórios europeu e americano, o homem conhece uma parte do mundo. Para uma biografia mais detalhada, você pode acessar a página do escritor.
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