Comportamento

Uma cidade contada em famílias

Gabriel Azevedo
23/03/2014 03:04
Não é para menos. Entre os anos de 1970 e 1980, de acordo com dados do IBGE, a população da capital paranaense cresceu 5,34% ao ano. O recorde entre as capitais. Só nas últimas quatro décadas, o número de habitantes saltou de 600 mil para 1,8 milhão de habitantes. Resumo: a província virou cidade.
E uma cidade de forasteiros. Mais da metade dos moradores não são naturais de Curitiba. Nesse cenário, famílias que antes tiveram peso na tomada de decisões e na construção da cidade, como Marques, Fontana,Pereira, Abreu, Correia, Ribas, Mace­­do, Leme, Beltrão, Leão, entre outras, foram abrindo espaço para novos clãs tradicionais como os Krieger, Cini, Guimarães e Malucelli.
“Uma mutação dinâmica e natural”, afirma o jornalista Aroldo Murá Haygert, autor da série Vozes do Paraná, livro que reúne entrevistas com os nomes expoentes do Estado. Na opinião do jornalista, ‘‘a elite hoje é outra’’.
A história
No livro Curitiba: Do Modelo à Modelagem, a semióloga e estudiosa de cidades Lucrecia D’Alessio Ferrara, professora de Arquitetura e Urbanismo da PUCSP, explica que entre os séculos 17 e 19, Curitiba era apenas uma passagem de tropeiros e condutores de gados do Sul. O cenário, descreve, mudou quando Curitiba vira destino da imigração de italianos, ucranianos, poloneses e alemães.
Mesmo assim, ainda era uma cidade relativamente sem importância. As principais famílias, (Rocha) Pombo, (Brasílio) Itiberê, (Santos) Andrade, (Hugo) Simas, (Bento) Munhoz da Rocha, viviam no litoral. As mudanças vêm a partir de 1853, quando o imperador D. Pedro II assina uma lei desmembrando toda a região do Paraná da província de São Paulo. Curitiba é escolhida capital da nova província.
A abertura de estradas, a construção da estrada de ferro Paranaguá-Curitiba e, sobretudo, o fervilhar da indústria da erva-mate, impulsionaram definitivamente o desenvolvimento da capital e o processo de colonização, deslocando o centro de poder do litoral para o primeiro planalto paranaense. “As elites política, cultural e econômica de Curitiba foram formadas, basicamente, pelas famílias ricas e tradicionais da Lapa, de Castro e do litoral do estado, que se estabeleceram na capital e dedicaram-se à indústria ervateira e à vida política”, observa o professor de História Contemporânea da PUCPR, Wilson Maske.
Segundo Maske, além da influência das famílias importantes do próprio estado, Curitiba recebeu clãs de outros estados, como os Mello e Silva, de Alagoas, e os Requião, da Bahia. “A Bahia era a província mais rica do país naquela ocasião. E muitos jovens, filhos de portugueses, vieram ao Paraná”, conta. De acordo com o professor, foi nesta fase que começou a miscigenação entre luso-brasileiros e estrangeiros.
A dinâmica na evolução dos clãs dominantes e eminentes, explica Maske, aconteceu na década de 1930, quando o estado passa a ser produtor de café. Segundo o professor, não há fórmula que determine o estabelecimento ou a derrocada de determinado sobrenome, mas no caso de Curitiba, afirma: “A cidade cresceu demais e a elite tradicional se retraiu”.
“O Paraná jantou aqui em casa”
Poucas famílias curitibanas têm tantos nomes importantes na mesma árvore genealógica. O advogado Francisco Fernando Fontana, por exemplo, descende de Ildefonso Pereira Correia, o Barão de Serro Azul; de Francisco Fasce Fontana, comendador, idealizador e construtor do Passeio Público; e de Pedro Aloys Scherer, um dos responsáveis pela criação do Porto de Paranaguá. Como se não bastasse a linhagem direta, o atual patriarca, hoje com 77 anos, é casado com Theresa Cristina Ribas Fontana, neta do interventor do Paraná, Manoel Ribas. Por essas e outras, o advogado sonha em escrever um livro chamado A História do Paraná Jantou Lá em Casa. E não é para menos: juntos, tanto Theresa, descendente dos também tradicionais Ribas, quanto os Fontana têm gerações de “notáveis” no DNA. E ambas as famílias tiveram uma influência enorme na construção da Curitiba como ela é. No livro Homens e Coisas do Império (1924), escrito por Visconde de Taunay, há um trecho em que Dom Pedro II cita Francisco Fasce Fontana, bisavô de Fernando: “É um dos homens mais inteligentes e bem-intencionados de Curitiba. É muito conhecido naquela cidade. Visitei seu engenho de mate”. Em 1888, Fasce Fontana recebeu a Ordem da Rosa, tornando-se comendador. Embora tenha a história da cidade e do estado no sangue, Fernando Fontana diz que a Curitiba não é mais a mesma. “A chamada elite mudou. Um sobrenome não tem mais tanta relevância, gerações mudam e outras famílias surgem”, afirma.
“O avião não é mais o mesmo”
O Paraná não era mais a Quinta Comarca de São Paulo quando Giovanni e Margherita Malucelli desembarcaram em Morretes, no litoral paranaense, em 1877, para trabalhar com agricultura. O casal de italianos, que naquela época fugia da fome na Itália, assim como outros milhares de compatriotas, deu origem a uma família que atualmente tem cinco mil membros. Bisneto de Giovanni e Margherita, o empresário Joel Malucelli, 68 anos, dono de uma das maiores fortunas do país, é hoje o mais famoso dos Malucelli. Mas nem sempre foi assim. Ele conta que, quando era menino, o sonho dele era trabalhar na antiga Malucelli da Visconde, do primo. “Eu tomava banho de piscina no castelinho do Batel”, conta Joel, que nasceu e morou na região do Água Verde. Quando questionado sobre a família, ele brinca: “Uns 50 devem trabalhar nas empresas [Joel tem 74 empresas], e tenho alguns outros no meu Facebook, não dá para conhecer todo mundo”. Na opinião do empresário, não dá para considerar os Malucelli uma família da elite, nos moldes tradicionais. “Todos são gente boa, mas nem todos têm a mesma visibilidade”, diz. Para ele, Curitiba virou uma cidade grande como qualquer outra. Com violência, trânsito e outros problemas. “Não é mais a mesma coisa, e não vejo soluções rápidas. Antigamente eu pegava um voo para São Paulo e conhecia 70% dos passageiros, hoje não conheço ninguém.”
“Gasosa dos piás”
A história da família Cini se confunde com a de Curitiba. Donos da Hugo Cini S.A., indústria de bebidas famosa pelos refrigerantes, o nome do clã está presente na mesa e na história de diferentes famílias curitibanas ao longo das últimas décadas. A saga desta família começa com a imigração. Ezígio Cini veio para o Brasil com um grupo italiano anarquista, no século 19, e fixou-se em terras concedidas pelo Império em Palmeira, interior do Paraná, com a intenção de construir um núcleo anarquista, batizado de Colônia Cecília. Lá, Ezígio se casou com Aldina Benedetti. Em 1891, nasceu o primogênito do casal, Hugo. Entre a decadência da Colônia, uma experiência na Lapa e um jornal anarquista em Curitiba, Ezígio vai para São José dos Pinhais em 1904, quando e onde funda a fábrica que entraria para a história da capital. A marca é transferida para o Batel em 1928. Atualmente controlada pelos netos – que ainda moram no mesmo bairro –, Orlando Cini Júnior e Nilo Cini sabem que pertencem a uma família que faz parte da história da cidade. “É uma satisfação ouvir uma história de um curitibano relacionado com o nosso sobrenome, com o nome do nosso produto”, diz Orlando. “Quando o Jaime Lerner diz que não há nada que represente melhor Curitiba do que uma Cini com pastel, nos enche de orgulho”, admite Nilo.

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