Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.
As memórias de Jacob Deutscher - Parte II
Paulo José da Costa
29/03/2024 16:56
Jacob Deutscher e seu pai. | Arquivo pessoal
Depois de uma breve pausa para contar a história do Don Juan das Araucárias, voltamos a mergulhar nas lembranças deixadas por Jacob Deutscher no manuscrito que encontrei por sorte na rua, em meio a descartes. Aquelas letrinhas miúdas, num português irretocável, mostram, a partir da experiência de vida de um menino, a vida cotidiana de Curitiba no entreguerras. Como nossa cidade recebeu milhares de imigrantes, que se juntaram aos descendentes de portugueses já instalados desde o século XVII, natural que nesse caldo houvesse o acréscimo de um tempero com as mazelas do velho continente.
Os italianos, poloneses, alemães, ucranianos, suíços, entre muitos outros, trouxeram as suas religiões, costumes, cânticos, tradições, e também seus ódios e rancores seculares. Mas o Brasil, talvez pela mistura das raças na miscigenação, ou pelo seu clima tropical, sei lá, forjou nos seus habitantes o que Afonso Celso, em 1900, chamou de “caráter nacional”: “…hospi- talidade, afeição à ordem, à paz, paciência e resignação, doçura, desinteresse, caridade, tolerância, ausência de preconceitos de raça, religião, cor, posição…”.
Mas, como veremos em algumas partes do manuscrito, para muitos, a realidade não foi tão rósea assim. O menino se queixa muito do que hoje chamamos de bullying, e seu relato é interessante porque mostra a vida escolar no Colégio Iguassu, assim com dois “s”, que funcionou na Praça Rui Barbosa por 66 anos, de 1917 a 1982, até o prédio ser vendido pela família Parodi e ser demolido.
A narrativa de Jacob pode incomodar porque cita nomes de professores e colegas, mas preferi manter no original por ser o retrato de uma época. Em vez de mudar ou adaptar textos escritos há muito tempo e que possam conter passagens hoje condenáveis, eu prefiro manter o original com a ressalva de que devemos ler com os olhos da época. Assim também não perpetuamos uma falsa ideia de que, no passado, tudo era “lindo e perfeito”. Longe disso.
“No primeiro ano ginasial, a aula de francês era a mais divertida de todas. Lembro das bagunças que fazíamos. O professor Loyola era um velho surdo e não podia manter a ordem na sala. Os alunos falavam animadamente em voz alta, batiam com os pés e faziam todo o barulho possível. Quando o professor vira- va a cabeça, todos emudeciam repentinamente e um silêncio completo reinava então na sala. Diante disso o Loyola gritava: – Seus cachorros! Sem vergonhas! Eu mando suspender toda a turma! E bastava ele virar a cabeça para o quadro para que o barulho recomeçasse. Algumas aulas eram reservadas para o certame de tiro. Com setras nas mãos atiravam bolas de papel. Uma algazarra infernal acompanhava a luta… bastava porém o professor lançar um só olhar pela sala para que todos, num abrir e fechar de olhos, estivessem sentados em seus bancos, calados, como se não houvesse nada… logo que Loyola virava a cabeça, uma gargalhada estrondosa saía de todas as bocas”.
“Alfredo Parodi, diretor do colégio, lecionava matemática. Era um homem enérgico. Diante dele toda a turma tremia. Na sua aula ninguém soltava um pio. Uma ocasião, o diretor pegou dois alunos brigando, um deles era um valentão que gostava de brigar. Parodi pegou o tal aluno pela orelha e deu-lhe um puxão. De repente, soltando-a, deu-lhe um formidável tapa no ouvido. É interessante observar que há professores que não conseguem fazer com que os alunos se comportem na aula, nem com promessas, nem com ameaças (por exemplo é o caso do Loyola), ao passo que outros não precisam nem chamar a atenção dos alunos para que se comportem. Sem dúvida, o indivíduo já nasce com esse dom, essa facilidade de dominar os seus semelhantes”.
“… fazia-se uma algazarra medonha na aula. Perguntou então o professor Artur: –Que barulho é esse? – É o Jacob, respondeu alguém. Vejam só que patife. Era toda a classe que fazia o barulho. O professor Artur defendeu-me desta vez, dizendo que eu sozinho não podia fazer tanto barulho. Em outra ocasião, o professor Artur, ouvindo conversa na sala, disse: – Os dois que estavam conversando que fiquem de joelhos em cima da carteira. Ninguém se mexeu. O professor então ameaçou levantar os dois pelas orelhas. Notou-se então uma cena gozada: em vez de dois foram quatro os alunos que se ajoelharam em cima das carteiras, dois alunos que estavam ao fundo e quase ao mesmo tempo outros dois que estavam na frente e por isso não puderam ver o que se passou atrás deles”.
“Desejo apresentar aos leitores o grande malandro Mbá de Ferrante. Judiou-me ele o ano inteiro. Inúmeras vezes por dia eu rolava pelo chão nas mãos do Mbá. Ele era um sujeito forte e bem desenvolvido. A todo instante recebia dele ponta- pés, beliscões e bordoadas. Nas aulas fazia bagunça, incomodava os professores. Foi um dos alunos mais barulhentos da turma de meia-dúzia que dava cabo da paciência dos professores. Quando comecei a usar gravata, o Mbá gostava de tirá-la de meu pescoço e eu não sabia pô-la novamente. Não era a dor física que incomodava, mas sim a dor moral, que é mil vezes mais terrível. As safadezas desse bruto punham-me em brasas, assim como a raiva e a indignação, mas que se podia fazer?”
“Certa ocasião, numa aula de geografia, um aluno, o Joel Vilanova, perguntou ao professor: – O sr. sabe que o Jacob é judeu? Eu fiquei petrificado de medo e vergonha. Seria impossível alguém me desfechar um golpe mais terrível. O professor, padre Mazzarotto, certamente percebeu a intenção de meu colega e fez uma coisa que eu não esperava. Sua resposta foi a seguinte: – Ora! Isso não quer dizer nada! O Jacob é um bom rapaz, não faz diferença ser judeu ou não. Gostei de ver! O Mazzarotto portou-se com bastante diplomacia”.
Então, o nosso bom Jacob teve essa lembrança de um dos Mazzarotto, os irmãos Dom Antônio e Dom Jerônimo, mentes iluminadas do clero paranaense. Dom Antônio viria a ser bispo de Ponta Grossa, a partir de 1930, onde deixou profícuo patrimônio cultural. Não consegui descobrir qual dos dois foi o professor do Colégio Iguassu à época. Infelizmente os arquivos do colégio se perderam, inclusive os quadros de alunos e professores que, no dizer de Aramis Millarch, “estão hoje empilhados numa das salas do curso Decisivo. Generosamente, a família Parodi quis doar esses quadros para a Casa da Memória, que entretanto não se interessou…” (O Estado do Paraná, em 13 de março de 1985).