Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.
As memórias que nosso olfato guardou
Paulo José da Costa
27/09/2023 19:22
Comemoração
no Parque da Graciosa, 1936 | Foto: Arthur Wischral, acervo de Paulo José da Costa
Com certeza você já sentiu ao visitar um idoso ou uma velha loja, algum aroma que lhe despertou emoções, saudades, uma nostalgia de tempos vividos, um não sei o quê a lhe surpreender e transportar ao passado. A memória olfativa é poderosa.
De alguma maneira, ela registrou em tempos idos uma sensação em nosso cérebro que, num átimo, revive emoções há muito esquecidas. Você até se senta e se inquieta, vêm as lágrimas. O poder dos aromas em nos trazer recordações é forte e inebriante.
Cada um de nós tem seu universo próprio, mas interessante é que quando a mágica acontece, quase sempre iremos retornar à nossa infância, aos nossos pais ou avós, aos lugares que frequentávamos no dia a dia, a escola, a chácara, os locais de comércio. E esse exercício, que eu diria quase mediúnico, de trazer essas boas lembranças de nosso passado através dos sentidos, é fantástico. Os sabores, os sons, os aromas são armas de que dispomos para entrar numa máquina do tempo formidável.
Há aromas que jamais poderemos sentir novamente porque simplesmente desapareceram, mas a memória deles permanece como, mal comparando, a sensibilidade do amputado que “sente” a perna que perdeu. Os nossos sentidos têm esse poder de trazer esses “arquivos” escondidos lá nos recônditos de nosso HD cerebral. Não concorda?
Eu lembraria da minha saudosa vovó Binoca se abrisse uma gaveta repleta daqueles vidrinhos antigos de homeopatia, de que ela tinha coleções. Eu menino adorava abrir aqueles pequeninos frascos com tampinha de cortiça e sentir o cheiro, que era de um álcool, mas com alguma coisa a mais, com aquelas nomenclaturas em latim, calêndula, gelsemium, lycopodium.
Sem falar nas naftalinas com que ela enchia os armários, as gavetas repletas de papéis, ninguém mais usa a naftalina?
Essa minha avó paterna foi com certeza uma precursora dos modernos ativistas da reciclagem. Ela reaproveitava tudo. Tinha rolos de barbantes, que ia colocando em gavetas, cada rolo com um tipo específico, e quando precisava, lá estavam! Os papéis de embrulho eram cuidadosamente dobrados e guardados em armários, prontos para um futuro uso. Tenho certeza de que minha paixão por documentos, fotografias e papéis antigos teve o germe na casa dessa minha boa antepassada. Afinal temos a herança genética, mas o ambiente é que nos forja, não é?
Ela guardava tudo, tenho até hoje dúzias de almanaques de farmácia, verdadeira mania dos nossos avós e que eram distribuídos gratuitamente nas drogarias. Capivarol, Ross, Saphrol, Almanak de Bristol, a lista é longa. Hoje, são disputados por colecionadores e objeto de teses universitárias, mas, na época, frequentavam as cozinhas e mesinhas de cabeceira, além das “patentes”, é evidente.
Minha outra avó, Mariquinha, que era dos Bach, dos erroneamente chamados “russos do Lago” – pois de russa ela não tinha nada, era alemã do Volga – usava um sabonete de lavanda, sabe-se lá onde foi parar essa marca e essa fragrância que era só dela. A gente associa perfumes a pessoas, notaram? Vovó Mariquinha era uma pessoa simples demais, se contentava com muito pouco e adorava usar também um pó de arroz, que vinha numa caixinha circular, acho que era Cashmere Bouquet, o presente perfeito para o dia de seu aniversário. Essas pequenas coisas eram seus únicos luxos.
Ela rezava muito para Nossa Senhora Aparecida e tinha o costume de colocar umas lamparinas que ficavam flutuando numa caixinha repleta de azeite e, à noite, iluminavam as paredes com figuras de fantasmas, soltando um cheiro característico. Cadê esse aroma de saudade de um tempo que sumiu? Vovó viuvou muito cedo e ganhava a vida costurando e, às vezes, me pego ouvindo o som de sua máquina Singer. Como eu gostava dessa avó, a pessoa mais doce e pacífica que conheci na vida. Na foto de meu primeiro aniversário estamos na casa dela, de gente simples, onde aparecem minhas duas avós embaixo dos balões. Meus pais explodindo de alegria. Também, eu era uma gracinha.
E agora eu é que fiquei tomado pelas emoções. Me deu uma baita saudade de umas coisas bobas, que rechearam minha infância de alegrias e, apesar de muitas delas poderem ser revividas com certa facilidade, nunca serão iguais às daquele tempo. Quando sentirei novamente o cheiro forte daquele café que ficava fervendo na chapa do fogão? E os bolos e petiscos de que só as vovós sabiam os segredos? E aquele aroma da lenha queimando? O pinhão na chapa ficava quase torradinho e era o momento de bater com o martelo e se deliciar.
As festas! O que eu não daria para entrar num buraco do tempo e invadir uma festa dos antigos, qualquer festa, podia ser de alemães, de italianos, cheias de música, bebidas e comilança! E naquelas chácaras junto às vovós e vovôs, às tias e compadres, em meio a aromas como das gengibirras e cervejas caseiras, dos palheiros dos senhores, e o suor dos cavalos recém-cavalgados pelas crianças. Sentir o perfume de frutas que se tornaram raras, como os araçás, as guavirovas, as uvaias e as pitangas.
Devia ter um livro que, ao ser folheado, nos trouxesse todos esses aromas de volta. Um livro especial para cada um de nós, pois temos todos nossos aromas particulares só nossos, que povoam nossas lembranças e que sumiram, levadas pelo vento do tempo.