Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

Paulo José da Costa

Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.

Com a música à flor da pele

Paulo José da Costa
Paulo José da Costa
15/06/2022 23:44
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Na coluna Cotidiano de Antigamente, Paulo José da Costa desbrava o universo do passado. Nesta edição, ele sobre a música e melodia do passado. | Acervo/Paulo José da Costa

Lembro bem do nome: “Corridinho 1951”, um disco em 78 rotações que eu gastei de tanto tocar na vitrola e dançar ao redor da mesa, na casa de minha avó materna na provinciana Ponta Grossa dos anos 1950... Havia uma pilha de discos que ficava embaixo da mesa da sala, onde eu passava momentos inesquecíveis a remexer, sempre cuidando para não quebrar. Cada bolacha daquelas, feita de goma-laca, era uma descoberta, um mundo de ritmos e melodias, emoções que meus ouvidos de menino adoravam sentir. Acho que foram meus primeiros contatos com o mundo da música. Ou não? Lembro agora que eu ia às missas na catedral e gostava de ouvir os cânticos, hoje sumidos, mas eu recordo bem: um deles começava com “louvando a Maria o povo fiel” e um outro, “eu confio em nosso Senhor”. Eu detestava ficar me ajoelhando e o falatório em latim do padre, mas as músicas sempre me emocionaram. Às vezes saíamos da igreja em lindas procissões e os cânticos eram para mim quase um êxtase.
Minha família morava na rua Dr. Colares, em cima de um bar chamado “Nosso Cantinho”! Bem em frente vivia o senhor Juca e dona Maria Hoffmann e eu atravessava a rua e ia brincar com as filhas, a Idamara e a Joceley, que além de me fazerem de cobaia nas comidinhas feitas com leite em pó e chocolate, batidas num mini-liquidificador, me alegravam com os discos de histórias infantis, como “A gata borralheira” e “Robin Hood”, todas elas repletas de cantorias. A gente só ouvia os diálogos e as músicas e o resto ficava com nossa imaginação. Quanta diferença do bombardeio de filmes nos canais de streaming de hoje em dia, que deixam a criançada mesmerizada.
Disco 78 rpm “Corridinho 1951”.
Disco 78 rpm “Corridinho 1951”.
Meus pais eram pessoas simples, mas sempre tiveram boa música em casa. Tínhamos uma linda coleção de elepês que eram tocados na grande radiola Zenith no meio da sala, a qual eu transformava numa barraca com cadeiras e lençóis. Ali, escondido naquele meu mundo particular, eu viajava pelo dial e pelo “olho mágico” do rádio, pelo mundo inteiro. Era plena guerra fria e, então, eu pulava num instante da Radio Moscou para a BBC ou a Voz da América e daí para a Rádio Havana. Havia sons longínquos e pegava até radioamadores, como o meu vizinho Willy Oscar Targa, o PY5TS, que chamava todo mundo de macanudo... Mas o que eu queria mesmo era ouvir música e quando o Coro do Exército Soviético soltava as suas vozes eu vibrava com aqueles sons marciais e contagiantes. As rádios árabes também me enfeitiçavam com seus ritmos e seus cantores como Om Kalsoum e Farid El Atrache. Como lembro até hoje desses nomes? Eram umas arengas longas, estranhas e gemidas músicas, com violinos e muitos ritmos que eu adorava. Ainda hoje me surpreendo ouvindo esses programas na internet. O que se aprende a apreciar de menino fica para a vida inteira.
Discos de vinil dos anos 1950.
Discos de vinil dos anos 1950.
Acho que está aí, nessa radiola Zenith, a porta de entrada para meu ecletismo musical, esse meu gosto por tudo que é diferente, exótico. Lógico, a discoteca de meus pais ajudou. Os únicos discos realmente muito antigos que eles tinham eram uns da Casa Edison, que sempre começavam com aquele anúncio do nome da música, executada pelo Mário, ou pelo Cadete, e a frase infalível “disco da Casa Edison, Rio de Janeiro”. Dentre eles havia um especial de que eu gostava muito, com uma tal de Chiquinha Gonzaga. Imaginem: eu ouvia Chiquinha Gonzaga com dez anos de idade na vitrola, uma mágica aquilo. E havia um maroto, que meu pai se divertia em ouvir, chamado “Pomada”.
Meu primeiro disco de vinil, 1966.
Meu primeiro disco de vinil, 1966.
E então havia a coleção de discos “long-playing”, ou simplesmente LP.  Havia de três tamanhos, os de 12, 10 e 7 polegadas. Esses últimos com um furo enorme no meio e que precisava ser preenchido com uma chapinha de metal. Os maiores possuíam lindas e chamativas capas e alguns deles estão aqui na minha discoteca até hoje. Ouvi-los me traz uma sensação estranha, da mais pura viagem de volta à infância. Os discos lá de casa eram de uma profusão de estilos sem igual, aquele povo dos anos 1950 e 1960 tinha uma riqueza fantástica à sua disposição nas lojas de discos, no rádio, nas retretas, nos bailes animados dos clubes: boleros, marchas, valsas, chorinhos, sambas, rumbas, chá-chá-chás, canções francesas, italianas, uma mais linda que a outra, que maravilha! Carlo Buti, Jaqueline François, Bing Crosby, Orlando Silva, Francisco Alves, Duke Ellington, Glenn Miller, sem falar nos alemães com suas polkas e valsas! Daí para ficar exigente e escolher os intérpretes foi um passo: Juliette Greco ou Edith Piaf em tal música? Schippa ou Gigli no “Marechiare”? Orlando Silva ou Sílvio Caldas? Os dois que me perdoem, mas sempre fui do Chico Alves... Esses cantores populares, chamados “crooner”, cantavam na PRJ2, nos programas de auditório, ou nos bailes dos clubes da sociedade, muitos e muitos, animados pelas bandas do Jazz Guarany, Orquestra Tupã e o grupo do Calixtrato Sanson, um craque do piston.
Dedicatória de meu pai, José Villela da Costa, o Juca, a minha mãe Eluina Guzzoni.&nbsp;<br>
Dedicatória de meu pai, José Villela da Costa, o Juca, a minha mãe Eluina Guzzoni. 
Mas pensam que era só música popular? O primeiro disco com que meu pai presenteou minha mãe - eles eram noivos, em 1947 - foi o concerto da coroação, de Mozart, que guardo com carinho aqui comigo, com uma linda dedicatória, com um primor de letra. Uma delicadeza só aquela gravação com Wanda Landowska no pianoforte. As três óperas que havia na casa, em lindas caixas da RCA Victor, eu sabia de cor e salteado, cantava as árias e os coros junto. Foi onde aprendi a amar esse gênero tão especial. E eu vibrava, chorava, sem entender patavina do italiano! Não importava a língua, eu sentia as emoções dos intérpretes e aquilo penetrava em minha alma com força e uma energia com que a música popular nunca me atingiu. Eu me emocionava com o drama da personagem Gilda e a dor de seu pai, o corcunda Rigoletto, que a mata com punhaladas dentro de um saco no final, num fatal engano, um horror, pensem nisso! E na Cavalleria Rusticana, o grito que ressoava pela sala com a morte de Turiddu. O que poderia pensar uma criança de um drama do verismo italiano senão vibrar até o fundo da alma com aquela música visceral? O drama operístico nessas óperas chega ao mais profundo da tragédia. Se há uma música dos anjos em Bach, por exemplo, em Mascagni a música desce aos infernos com os sentimentos mais baixos do ser humano... E eu, criança, mergulhando nesse mundo! Tinha de estar sempre com os sentimentos à flor da pele.
O cinema com certeza foi o mensageiro desse gosto musical, digamos, mais sofisticado, para o público mais leigo. Através do cinema meus pais tiveram contato com as biografias de Liszt, de Chopin, de Glenn Miller, de Tchaikowsky, ou em operetas lacrimejantes com as duplas Jeannete MacDonald e Nelson Eddy ou Martha Eggerth e Jan Kiepura, em filmes que levavam as platéias a cascatas de lágrimas: lembro bem de minha mãe e seu lenço molhado. Ora, assista “Maytime” ou “Rosemarie” e se renda às lágrimas. Depois me conte!
Alguns programas de concertos na Princesa dos Campos.
Alguns programas de concertos na Princesa dos Campos.
Mas em Ponta Grossa havia também música ao vivo: toda casa da sociedade tinha a sua pianista e a coleção de partituras, mas em 1954 a cidade ganhou sua orquestra sinfônica, a primeira do Paraná. Em 1959, foi inaugurado o piano de cauda do Clube Pontagrossense, com a pianista Edith Bulhões. E havia as retretas com a Lyra dos Campos, com a banda do 13 RI. As pessoas dançavam ao som das valsas em volta do coreto na praça, que tempos fabulosos! Lembro que a SCABI, de Curitiba, tinha uma espécie de sucursal na Princesa e os músicos que se apresentavam na capital vinham de trem para récitas no Cine-teatro Ópera, no Renascença ou no Clube Guaíra. E sempre com casa cheia. Tito Schipa cantou no Cine Ópera em 13 de abril de 1954! Eram tempos em que as atrações internacionais esticavam suas viagens e chegavam às cidades menores, mas com público ávido.
O coreto de tantas retretas, lamentavelmente demolido.
O coreto de tantas retretas, lamentavelmente demolido.
Esses tempos passaram, mas hoje, graças ao milagre da internet, todas as músicas e estilos que citei podem ser ouvidos com um clique em um canal do YouTube. Nunca foi tão fácil visitar o passado.