Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.
O litoral paranaense era assim…
Paulo José da Costa
12/05/2021 18:41
*Dedico esse artigo a Paulo Affonso Grötzner (1925-2021)
Quando os primeiros exploradores do que é hoje o nosso litoral deitaram suas âncoras, lá por 1550, apesar de rudes homens do mar e guerras, com certeza devem ter sido tocados por aquela beleza inigualável. Hoje quase nada mais existe daquela exuberância vista nas praias, à exceção talvez de um ou outro canto escondido, na Ilha do Mel, ou subindo pros lados de São Paulo, entre Guaraqueçaba e Cananéia. Mas ali, no berço de nossa civilização, Paranaguá, Matinho, Cayuvá, como se dizia, tudo se transformou neste século XXI: loteamentos, edifícios, asfalto, barulhos, sujeira, esgoto... No entanto, há poucas décadas ainda se podia sentir a beleza em estado original, bruto, pois só nos anos 30 do século XX foi que a invasão dos moradores do planalto se iniciou realmente.
Até 1930 raras eram as residências de veraneio, poucos os que se atreviam a enfrentar a viagem, os mosquitos e a malária que infestavam o nosso litoral. Naqueles tempos, para se chegar ao litoral, na descrição do querido amigo Paulo Affonso Grötzner, que nos deixou em abril com a idade de 96 anos.
“era através da estrada da Graciosa... pavimentada com macadame, que o trânsito transformava em lama e buraco nos dias de chuva e provocava incríveis nuvens de poeira no tempo bom... Na viagem, quando descendo a serra, chegava- -se à baixada, surgiam as casas dos caboclos que moravam na margem da estrada e que sempre ofereciam produtos da sua lavoura: bananas, laranjas, goiabas, aipim, farinha de mandioca artesanal.
Ao longo do caminho a estrada passava no meio das localidades: Porto de Cima, Morretes e Alexandra. Cerca de 5 km antes de Paranaguá, à direita, iniciava a estrada da praia. Nesse trecho, de Paranaguá até Praia de Leste, de 25 km, a pavimentação precária apresentava um verdadeiro castigo para os motoristas. Com tempo seco, a areia fofa criava dificuldades... a viagem seguia lenta, o carro atolava... Quando se atingia a Praia do Leste, acabava a estrada e os 20 km até Caiobá eram rodados sobre a areia da praia.
Nesse ponto começavam incríveis desafios aos motoristas. Primeiro: o conhecimento das marés... o motorista previdente programava a viagem procurando chegar na beira do mar uma hora após a máxima, trafegando sobre a areia úmida e firme, sem ser atingido pela água e com o objetivo de chegar ao destino antes da virada da maré. Segundo: passar sem encalhar na duna existente entre o final da estrada e o início da faixa de areia firme. Esse problema repetia-se na chegada e saída em Matinhos, na entrada de Caiobá, e para quem fosse a Guaratuba, também na passagem pela “prainha”. Quando o carro atolava, o jeito era cavar para destrancar as rodas traseiras e com a ajuda de moradores da região, sempre dispostos a faturar uma gorjeta, empurrar o veículo sem ligar o motor.
Na passagem do rio Perequê, onde a situação muitas vezes se apresentava mais dificil, havia uma junta de bois disponível que atrelada ao pára-choque dianteiro do carro, resolvia a situação”. E continua a descrever o nosso cronista Paulo Affonso: “quem não queria, ou temia arriscar o próprio carro em tal aventura, dispunha de duas opções: viajar de trem até Paranaguá e prosseguir com a “diligência”, um micro-ônibus que fazia a linha das praias regularmente em horários sincronizados com os dos trens. Nem sempre dava certo, principalmente na volta, o que obrigava a um pernoite em Paranaguá. A segunda opção, utilizar os serviços de “lotação”, por muitos anos prestados pelo Sr. Ernesto Weigert, que apanhava os passageiros em suas residências em Curitiba e os deixava em seus endereços nas praias...” (*). Por esse depoimento vemos a importância das memórias escritas, pois só quem viveu o momento pode nos deixar a narrativa de como era realmente.
Como se vê, nossas praias se mantiveram quase intocadas até a década de 1930 pelas dificuldades de lá se chegar. Em 1938 havia apenas cerca de 20 casas em Caiobá e um hotel com telefone. O Paulo Affonso não menciona, mas o Cid Destefani contou que havia gente que ia às praias de avião. Sim, a Cia Aero Lloyd fez voos durante um certo tempo e o aparelho pousava na praia mesmo. Alguns aviadores amadores, como Wynnie Gomm também se aventuravam e desciam na areia, o que era uma festa para os frequentadores de então.
Mas quem habitava essas pequenas aldeias praieiras antes da descida barulhenta dos curitibanos? Nos primeiros anos do século 20 alguns fotógrafos andaram pela região e deixaram registros dos habitantes, então chamados simplesmente de caboclos. Selecionei em meu arquivo duas viagens que foram registradas em fotografias e que documentam esse período, mostram um pouco daqueles habitantes originais da terra, antes de sua expulsão pelos loteamentos e crescimento urbano. A primeira, de 1906, foi uma viagem do Presidente do Estado João Cândido Ferreira. Ele visitou Guaratuba, Matinho, Cayuvá e os registros são de A. Oliveira, sobre quem nada descobri.
A segunda é do fotógrafo Arthur Wischral, em 1927, em companhia do engenheiro e viajante Hugo Hegenberg. Saíram de Curitiba de trem até Morretes e depois seguiram a pé para Paranaguá, Guaraquessaba e retornando a Paranaguá, até Guaratuba, passando por “Matinho” e “Cayuvá”. Hugo Hegenberg, muito sensível e poético, deixou-nos um texto lindo que, com as fotos de Wischral formam um conjunto inigualável na descrição de nosso litoral de então.
Esse último álbum tem uma história interessante: encontrei-o quando vasculhava sites na internet, em uma casa de “Bücherantiquariat” na Alemanha. Estava num arquivo qualquer desde os anos 30, pois Hugo tentara uma edição alemã com o material, o que não deu certo. Apareceu então nos anos 2010 num sítio online e tive a sorte de o encontrar. Fiz a compra e descobri que era o segundo álbum, faltava o primeiro, que só obtive quando a coleção da família de Arthur Wischral foi incorporada ao meu acervo de fotografias alguns anos depois. Uma boa viagem na janela do tempo aos nossos leitores.
(*) in “O caminho para o mar”, por Paulo A. Grötzner, disponível na Internet.
*PAULO JOSÉ DA COSTA nasceu em 1950 em Ponta Grossa, é comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.