Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.
De Rio Negro a Porto União numa canoa em 1899 – Parte 2
Paulo José da Costa
25/07/2023 14:29
A festa de lançamento do Vapor Visconde de Guarapuava, em 1899.
Corria o mês de dezembro de 1899. Narramos na edição anterior que Gustav Tenius e sua família (esposa Bertha e o filho de colo Rudi) se aventuraram numa volta para casa numa canoa, de Rio Negro a União da Victoria, pelas águas do Rio Iguaçu, apenas com a ajuda de um rapazote de quinze anos. Como vimos, eles tinham ido a Curitiba comemorar o batismo do pequeno Rudi e também fazer provisionamento para o armazém que possuíam em União da Vitória. Frustrado o intento de pegar um vapor para o retorno, primeiro em Porto Amazonas, depois em Rio Negro, contrataram então uma pequena canoa para seguir viagem. Tudo está muito bem narrado no caderno de memórias que Gustav escreveu quase cinquenta anos mais tarde.
Escreveu ele com sua letrinha miúda: “o velho rio Iguassu estava cheio, a água de barranco a barranco, e já em franca marcha vimos que uma cobra vinha nadando e bem em direção a nós. Como estava ao alcance de uma paulada, o rapazote que vinha na proa remando deu com o remo no bicho mas infelizmente não o atingiu e elle com essa agressão ficou furioso e enrolando-se na ondas que a pancada produziu, chegou-se à canoa... justamente no lugar em que mamãe estava sentada com o Rudi no colo.”
Não sabemos o tamanho da cobra mas o tamanho do medo que produziu podemos bem imaginar. Mãe e filho de colo, enrolados num encerado, “a cobra se agarrou ao encerado e como um raio e já com a boca aberta pronta para uma mordida . Mamae só se inclinou no lado oposto da canoa e olhou firme para o bicho pois não havia mais como se escapar... Agora, como eu tirei o remo ... isto eu não sei, foi tudo como um relâmpago, só sei que dei a bordoada bem acertada e matei a cobra. Meditando bem, qual seria o resultado que uma mordida de cobra podia causar, longe de todos os recursos, nem uma casa na redondeza, tudo longe, tudo deserto. Mas Deus estava perto!”
Lembro o título dessas memórias escritas por Gustav cinquenta anos mais tarde, no Rio de Janeiro: “Belas demonstrações de proteção Divina em minha família”, sendo essa narrativa da viagem pelo Iguassu apenas a primeira dentre dezessete que conta. Desviando um pouco, mas sempre dentro do assunto principal, este livreto de 58 páginas, escrito com letra miudinha e caprichada, é um testemunho sem preço dos tempos pioneiros da exploração do rio Iguaçu, ainda mais que inédito até agora, exceto pelos trechos que estou trazendo a lume. Há um capítulo onde ele descreve como se viajava em 1877, de Porto União a Curitiba. Os seus companheiros de viagem foram o proprietário de sapataria Francisco Neumann, o hoteleiro Carlos Groth, Mathias Meier, outro sapateiro, e o oficial do Exército vindo da Colonia Xanxerê, Maurício Irvain. A viagem foi feita no vapor Cruzeiro, de propriedade do Cel Amazonas Marcondes. Olhem quantas histórias! Todos esses personagens, seus descendentes devem ficar alvoroçados, pois eu com certeza me emocionaria se visse o nome de um meu antepassado nessa lista. E depois ainda tem o Cel Amazonas Marcondes, o iniciador da exploração das nossas vias fluviais com esses vapores míticos. O nosso viajante narra as peripécias com o barco sobrecarregado e se arrastando pelos baixios do rio até conseguir encalhar. Uma pedra enorme abre um rombo no casco e o barco começou a fazer água. Foi um tal de jogar os fardos da erva-mate nas margens do rio ou nas duas chatas que ele vinha puxando. E o medo da água chegar às caldeiras e ela explodir... Deixo essa parte para contar numa próxima.
Voltemos aos nossos aventureiros, que o melhor está por vir... Já alta noite, dez horas , a escuridão tomando conta de tudo, “ouvimos o apito de um vapor que vinha subindo, era o Victoria. Como era uma curva do rio, o vapor que vinha do lado oposto adonde nos estávamos, teve de atravessar o rio, vindo firme em direção a nós. Com o barranco, tudo coberto com galhos de árvores, estas com suas copas cobriam as margens,não havendo um lugarzinho limpo adonde se podia aportar em segurança, mas tive que fazer, não restava outro meio, comecei a gritar, a riscar fogos para o ar, para chamar a atenção do pessoal do vapor, que estávamos em perigo de sermos postos a pique. Felizmente o pessoal percebeu o sinal e desviarão o rumo, fazendo parar a máchina. Agora com a machina parada, o vapor, devido a forte correnteza das águas começou a rodar para trás. O machinista pôs então a machina a trabalhar de novo e claro era que, com a força da roda provocou um mundo de ondas as quais pegarão a canoazinha carregada e a levantaram, arremessando-a como um caco entre as copas das árvores, chegando a quebrar galhos sobre nossas cabeças... foi um dos momentos mais críticos de minha vida, julgava que íamos afundar ... tirei o revolver do cinto e dei diversos tiros gritando que se não parassem a machina eu ia alvejar o piloto... felizmente me atenderam ... Mamãe por sua vez não deu um grito , manteve-se calada , ´pensava somente na proteção do filho em seus braços... queridos ! posso dizer que mamãe é uma mulher extraordinária, nem um momento pensou em si, mas só no filho e em mim... Milhares de mulheres em um momento como este levantariam uma gritaria infernal !”
E termina o narrador: “... assim, continuamos a viagem, a noite estava linda, a escuridão da mesma só illuminada pela vasta e bellissima luz das estrelinhas do céu... Enfim chegamos em Porto União, erão mais ou menos seis horas da manhã. Batemos na porta da casa, os nossos paizinhos estavam deitados, a nossa mãe abriu a janella que dava para a rua, olhou para baixo e disse para papai, lá embaixo está uma mulher com uma criancinha nos braços, meu pai pulou da cama e gritou é a Bertha, desceu as escadas como um vento foi abrir a portas deixando enttrar os queridos Bertha e Rudi...”
Levou meio dia e uma noite a viagem. E chegaram bem. Como bem assinala nosso aventureiro : “chegamos bem, muito bem, graças ao nosso Grande e Bondoso Criador de tudo”.