Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.
José Penalva e seu Madrigal Vocale
Paulo José da Costa
23/11/2022 13:48
Na casa de Zilah Gay de Miranda, 1983. | Acervo de Paulo José da Costa
Principio a escrever este texto sem muita pretensão, sentadinho num canto da Capela Santa Maria, enquanto aguardo o momento de entrar no palco com o Madrigal Vocale, para um concerto em que comemoramos os quarenta anos de fundação do grupo e também os vinte anos da morte de seu fundador, José de Almeida Penalva. Enquanto aguardo, vêm-me os pensamentos. Desses gostosos 40 anos de cantoria, participei de 35, se bem me lembro. E um misto de saudade e alegria me conduz àquela noite de 1987, na casa de Dona Zilah Gay de Miranda, quando pela primeira vez ensaiei com o conjunto. O que me levou até lá? Onde reuni coragem para tanto? Sim, pois o “Vocale”, como sempre foi conhecido, era um grupo muitíssimo seleto de vozes, o seu repertório difícil e, mais, o seu regente e fundador, exigente ao extremo com a interpretação.
Eu vinha do Coral de Curitiba, com um repertório fácil e sem muitas exigências dos cantores. Também havia passado pelo Coral Sinfônico do Guaíra, regido então pelo maestro Gerling, que se deslocava semanalmente do Rio Grande do Sul para preparar o belo Stabat Mater de Dvorak, com coro e orquestra, uma obra muito expressiva e melodiosa. Mas enquanto no Guaíra o coro era enorme, só os tenores eram perto de vinte, no Madrigal éramos apenas três ! Num grupo pequeno assim, as vozes precisam estar perfeitamente casadas, formando um timbre perfeito, pois estão sempre muito expostas. Ninguém pode se destacar, aparecer. Num madrigal não há solistas, o próprio naipe de vozes o é. E foi nesse grupo que me meti, modestamente, eu que não tinha então grande leitura musical, e comecei a ensaiar nervosíssimo. Penalva, um misto de sacerdote, professor, compositor e regente, me incutia confiança. Gostara de meu timbre de tenor, que ele precisava para o grande desafio que era a Missa Papae Marcelli, de Palestrina. Ele gritava muito, era severo, parava e recomeçava ao menor erro na afinação, na justeza, no ritmo. Era inflexível, mas todos entendíamos e o resultado era gratificante.
Coloquei alguns ensaios dessa época no Youtube, eu já tinha essa mania de gravar tudo... Percebe-se que além de cantarmos, aprendíamos estilos, interpretação, uma verdadeira dádiva a um neófito. Lembro bem da comparação que fazia dos arcos das igrejas góticas com os das músicas de Victoria, Palestrina, Byrd. Assim, agarrei com unhas e dentes aquela oportunidade que a minha estrela e meus guias espirituais me propiciaram. Na estréia da Papae Marcelli, no Guairinha, em setembro de 1987, lá estava eu, em companhia de outros 16 integrantes. E não parei mais de cantar e me aprimorar.
O que nos leva a cantar em grupos corais? Sei que os primeiros cantos dos humanos devem ter sido para acalmar os bebês, acalantos de uma mãe aflita. Lá no profundo das cavernas nas idades mais remotas deveria se cantar também para acalmar os deuses nas tempestades, ou pedir ajuda nas colheitas. Contudo, cantar sozinho não tem a força do cantar em grupo. Cantar num coro é diferente do que fazê-lo solitariamente. O canto coral aproxima as pessoas, dá um sentimento de união, de cumplicidade. E quando a música foi composta por um gênio como Bach, por exemplo, a aproximação com sentimentos maiores, elevados, se concretiza. Você pode nem crer em Deus, mas ouvindo os coros de Bach, sua descrença se transforma e ainda que por instantes você se aproxima da Fé. E se o coro atinge o estado de Arte, você pode ir ao êxtase.
O grande incentivador do canto coral no Brasil foi Heitor Villa-Lobos, com a divulgação e criação de seus orfeões em cada escola do país. Infelizmente costuma-se associar esse período do Villa e sua atuação na difusão da música nas escolas com o Estado Novo de Getúlio, o que é um erro. Villa pensava apenas em música e a sua propagação entre as crianças e ele estava certo, muito certo. Música nas escolas faz com que se despertem vocações e futuras atividades e profissões, tirando os jovens do ócio destrutivo e causador de vícios. Além do mais, a música torna as pessoas melhores.
Quando Penalva chegou a Curitiba, em 1942, para estudar no Studium Teologicum, dos claretianos, encontrou aqui a Schola Cantorum Aloysiana, tornando-se rapidamente seu vice-regente. Ele tinha 18 anos. Depois regeu o Coro Claretiano de Curitiba, até 1949. Nos anos 1960, regeu o Coro da Pró-Música e mais tarde o Madrigal Pró-Música, além dos coros da EMBAP e de Blumenau. Em 1982, ele resolveu criar seu próprio grupo vocal, transformando o Madrigal Pró-Música em Madrigal Vocale que, além de satisfazê-lo na interpretação de peças do repertório renascentista, serviria de laboratório sonoro para suas próprias experimentações musicais. No dizer das biógrafas de José Penalva:
“O madrigal tornar-se-ia símbolo do ideal sonoro e expressivo almejado por tantos e tantos maestros e passaria a ser considerado um dos mais gabaritados, importantes e expressivos conjuntos vocais nacionais. Mantinha intensa programação, tanto a capella como com a Orquestra de Câmara de Blumenau, a Orquestra de Câmara de Curitiba e a Camerata Antiqua de Curitiba, com ampla atividade de concertos nas mais importantes salas do país. O Coro e o Madrigal Pró-Música, e o Madrigal Vocale foram responsáveis pela estréia de várias das obras do compositor, desde os singelos mas preciosos Madrigais Brasileiros, até suas grandes criações como o oratório Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, o Salmo 90 e o Obsequium, entre outras.” (Elisabeth Prosser e Silvana Bojanoski, in “José Penalva, uma vida com a batina e a batuta”, 2006, p.50).
Termino o meu artigo em casa, após o concerto que mencionei no início. Casa cheia, plateia afetuosa e entusiasmada, aplausos e bis. Cantamos sob a regência de Bruno Spadoni, discípulo de Penalva, as peças que ele mais amava incluir em seus concertos, como o Exultate Deo, de Palestrina, o lindo moteto natalino, de letra tão expressiva, “O Magnum Mysterium”, de Victoria, e o madrigal de Gesualdo “Itene, o miei sospiri” (onde o choroso cantor pede aos ventos que levem seus suspiros a sua amada). No encore final, convidamos os antigos vocaleanos na platéia a subir ao palco e cantar “Gente Humilde”, mais um dos felizes arranjos do nosso fundador. Vê-se que Penalva não era só do divino, mas sabia cantar as alegrias e tristezas terrenas. Ou não teria composto os seus madrigais brasileiros, com letras que musicou magistralmente. O último desses madrigais, cuja estréia mundial foi neste concerto, é um hino carnavalesco imortalizado por Carmem Miranda, o “Tic-tac do meu coração”. Só Penalva conseguiria transformar essa marchinha deliciosa numa intrincada e dificílima peça contrapontística a quatro vozes.
Felizmente o canto coral continua a ser difundido e praticado por milhares de grupos em todo o mundo. Cantar é a melhor maneira de sossegar a alma nestes tempos bicudos. Por isso, se você, leitor, sabe de alguém que pertence a um grupo de coralistas, peça para ir conhecê-lo. E participe. Depois me conte.