Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.
Meus tempos de guri na Princesa dos Campos, pt 3
Paulo José da Costa
23/01/2023 17:29
Vista aérea anos 1960.
Outro dia comentei nesta coluna que fui um piá de muita sorte por ter ido morar com minha família no predinho em frente à praça da estação, naquela provinciana Ponta Grossa do final dos anos 1950. Que outro lugar me propiciaria tamanha liberdade para descobrir o cotidiano de uma cidade inteira e me permitir um primeiro aprendizado na escola da vida? Sim, daquele sobradinho que ainda existe, eu e minha turma invadimos a praça, a estação e depois fomos conquistando cada canto daquela cidade linda que a cada dia se torna mais distante e diferente da de hoje. Se havia perigos para um grupo de garotos de 11, 12 anos, não sei, mas nunca tivemos medo de nada, aprendemos mais coisas boas do que ruins, e assim conquistamos o nosso espaço: toda uma cidade!
Descendo a rua 19 de dezembro, saindo da praça da estação, no número 113 morava minha avó, Mariquinha Bach Guzzoni. Falando nela, já me deu vontade de tomar um café, daqueles no coador de pano. Mas tem de ser com leite do leiteiro, que vinha na carroça bem cedo, naquelas garrafas com tampinha de papelão. Era um leite gordo, nutritivo, e a gente fervia no fogão a lenha e a nata ficava por cima na leiteira. Eu adorava colocar esse leite único no café e tomar, mas melhor ainda era mergulhar o pão d’água ainda quentinho na xícara e comê-lo todo lambuzado com a nata. Se o pão estava com boa porção de manteiga sem sal era melhor ainda. Eu só não gostava quando alguém pegava a leiteira e assoprava para afastar a nata antes de colocar em sua xícara...aí não dava.
Falando da vovó, lembro das traquinagens. A gente era moleque na expressão da palavra. Mas não havia maldade, era traquinagem pura. Eu tinha um laboratório onde era metido a criar aranhas (!), escorpiões (!!), e a construir foguetes (!!!). O Claudio Rafael Rugilo era meu vizinho e é testemunha. Todo mundo achava que eu iria para as ciências que ia ser o cientista “louco”. O “laboratório” ficava nos fundos da casa de vovó, um puxado de madeira construído por meu tio Orlando Guzzoni, que à época trabalhava com consertos de geladeira. Depois ele se mudou para Curitiba e eu fiquei com a casinha só pra mim e me esbaldei. Adorava abrir sapos, fazia experiências loucas com substâncias que conseguia livremente na cidade. Tenho um caderno com as experiências! Por exemplo, lembro claramente que quando eu misturava ácido sulfúrico com permanganato de potássio (que se vendia em lojas de agricultura), aquilo virava em fogo com lindas fumaças de cor lilás. Não me perguntem como não morri nessas experiências, mas tive um coleguinha do Regente Feijó que morreu nessas brincadeiras, com 11 ou 12 anos... Lembro perfeitamente disso, não houve aula no colégio no dia, acho que em 1962.
Ainda recordando das traquinagens, lembro de um episódio não menos explosivo. O Julio Neme, da Casa Íris, morava na rua Pinto Duarte, que dava para a rua da estação – sempre ela – onde eu morava. Pois eu tinha um amigo, chamado Johny Saad, que era da pá virada como eu e morava numa casa exatamente em frente ao prédio do Julio Neme. A gente entrava e saía da casa como se a rua fosse nosso quintal e eu lembro com o maior carinho não só deles, como de todos os descendentes de sírios e libaneses que ajudaram a enriquecer nossa terra. E lembro como se fosse ontem de um episódio: o Johny, tendo eu como cúmplice, haha - eu deveria ter uns 12 anos - armou uma espécie de canhão com um tubo de papelão, daqueles que se usa para enrolar tecidos nas casas do gênero. Não duvido que o tubo até fosse da Casa Iris... Ele colocou o canhão no quintal, fincado no solo, boca pra cima, e jogou uma bomba junina, mas daquelas boas, que naquela época tinha um nome hoje “cancelado” e em seguida jogou uma bola de bilboquê para servir de projétil. Quando estourou, a bola foi diretamente ao terceiro ou quarto andar do edifício em frente, exatamente no apartamento do Julio Neme. Foi um barulhão e eu só vi a esposa do Julio sair na janela gritando, a bola havia acertado no espelho do toucador, quase a acertando. Eu me mandei pra rua correndo como um raio. Deixei o portão aberto, o cachorro fugiu, a senhora gritando lá em cima, foi um pandemônio. Não sei se acharam o cachorro, ele estava mais assustado que eu. E eu sumi da casa por um bom tempo. Quem disse que moleque da cidade não apronta ?
Em frente à casa de vovó havia a fundição do sr. Alfredo Perle. Era um prédio antigo, praticamente em ruínas. Eu gostava de entrar e ver os operários jogando o metal fundido nas formas, de onde sairiam chapas de fogões a lenha e mil outros utensílios. Tudo era feito no chão mesmo e eu apreciava ver o líquido fervente descendo pelos canais até tomarem alguma forma. Faz-me lembrar também do tio Leopoldo Bach, que pouco mais acima na mesma rua, tinha sua ferraria. Quantas vezes ajudei-o no fole, eu, piazote franzino me matando naquele subir e descer tangendo o fole, enquanto ele punha o ferro em brasa para bater na bigorna e forjar uma ferradura. São lembranças boas que me vêm agora, aquele martelar na bigorna, às vezes duas pessoas se revezando na queda do martelo, pim, pom, pim, pom, depois da ferradura formada, enfiá-la no balde com água fria. E quando vinham as carroças, Tio Leopoldo caprichava na feitura dos aros das rodas, feitos em metal, com toda uma técnica ancestral na sua confecção. E quando colocava as ferraduras nos cavalos, ele cortava com maestria o casco milimetricamente para, enfim, colocá-la em brasa, saindo aquele cheiro forte característico e, por fim, usar seis pregos que furavam o casco em lugares muito bem sabidos, de modo a jamais machucar o animal. Finalmente, com um alicate especial ele cortava a parte exposta do prego e dobrava um pedacinho para fixar. Uma arte! Tio Leopoldo era um mestre, ou, usando um adjetivo que ele gostava de usar: um colosso!
Uma das filhas do Tio Leopoldo, Anadir, casou-se com uma figura folclórica mas imensamente querida na cidade. O Farid Calil Hafez, ou simplesmente, o Faridão. De peso descomunal, derretia o coração de todos ao recitar poemas com belissima voz em programas da PRJ2. Torcedor do Guarany, tinha um local especial na arquibancada do estádio, com duas poltronas adaptadas. Morava num dos sobrados da rua da estação, em cima do bar do Abreu, e de vez em quando a Anadir gritava lá do alto da janela – Paulinho, vai buscar um carro pro Faride, depressa!. E eu, piá de meus 10 anos corria até a fila de carros de praça em frente à farmácia Milka e dava a ordem para um deles ir buscar o faridão. Eu ia correndo atrás para ver a cena do homem mais simpático mas também o mais gordo da cidade subir no carro, que tinha de ser um daqueles grandões dos anos 50. Era uma dificuldade danada para ele entrar e, quando conseguia, a gurizada que se aglomerava nas cercanias gritava e ria, era uma algazarra, porque o que adorávamos era ver o carro abaixar com o peso de 160 quilos de uma vez. O bichinho reclamava, guinchava, as molas vergavam, mas lá ia ele até a prefeitura, onde Farid trabalhava. Nos domingos ele viajava até a PRJ2 onde lia poemas com sua voz emocionada. Faridão para onde foi você, além dos recônditos de minhas lembranças ?
Lembranças que, à medida que vou escrevendo, teimam em aflorar. Quantos lugares mágicos naquela Ponta Grossa que desapareceu. Todos esses lugares fui descobrindo a partir de meus 10, 11 anos de modo que em pouco tempo a cidade era toda minha, meu quintal. Na próxima conto mais, porque tem muito mais para contar.