Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.
O Don Juan das Araucárias
Paulo José da Costa
01/03/2024 21:37
As cartas e bilhetes destinadas a Luiz, o Don Juan curitibano. | Arquivo pessoal
Em certa passagem da ópera Don Giovanni, de Mozart, estreada em Praga em 1787, o personagem Leporello mostra a Elvira um catálogo com a lista das conquistas do sedutor da obra-prima de Lorenzo da Ponte. A ária, uma das mais conhecidas e deliciosas do mundo da ópera, diverte ao contar as seduções do conquistador: “Na Itália, 640, na Alemanha, 231, mas na Espanha, eram já 1003!”
E não é que, na vida real, tivemos um Don Juan autêntico, curitibano, em época um pouco mais próxima de nós, nos “loucos” anos 1920? Eram loucos os anos na Berlim daquela época, ou Paris… em Curitiba, para mim, é novidade. Mas não tenho um “catálogo”, e sim 71 cartas e bilhetes apaixonados, dirigidos ao nosso Don Juan das Araucárias, um certo senhor Luiz, cuja identidade, por motivos óbvios, jamais poderei revelar.
Por essas mensagens, vemos que a nossa então bucólica capital, com a tranquilidade das suas ruas quebrada apenas no bulício do carnaval, nas procissões católicas em dias santificados e em paradas militares de 7 de setembro, tinha atividades bem menos dignas de serem convertidas em poesia pelos nossos bem comportados poetas paranistas.
Por debaixo dessa aura de placidez e pureza de nossos costumes, onde as senhorinhas frequentavam os bailes dos grêmios e as festas da primavera, agitavam-se nos recônditos de quartinhos de hotéis baratos, em ruas bem conhecidas e pelo visto muito frequentadas, entre cochichos e cenas impublicáveis dignas de romances de Laclos ou Crébillon, encontros furtivos ansiosamente marcados.
Não que as nossas mocinhas fossem dadas a tais loucuras, nisso não creio. Eram sisudas senhoras, casadas, viúvas ou solteironas, mas todas bem experientes, vividas e sabedoras do que queriam as autoras das cartas que possuo, reveladoras de toda uma humana essência. Deixei as passagens mais picantes de fora, por respeito ao leitor, a quem peço que exercite a sua imaginação…
"Luiz, descobri por pessoas de confiança um quarto na rua Iguassu, nr 84, ou 82, veja se é verdade e quinta-feira à noite espera-me na esquina da Iguassu com Floriano, às 7 horas, que direi que vou ao cinema e passamos até as 11 horas lá. Até quinta à noite. A.V."
Em 4 de setembro de 1927, a mesma A.V, escreve:
"Luiz, queria dar-te a minha opinião sobre a mobília que vai comprar, para dar um aspecto alegre e agradável ao nosso quartinho. Tem uma cor de roza, é esta que eu quero, cor de roza, é linda como o nosso amor..."
Parece que a ideia do quartinho com mobília cor-de-rosa não deu certo, pois anos mais tarde, em 1931, a nossa apaixonada escreve:
"Encontrei um quarto em muito melhores condições, me disseram com certeza que no Hotel do Commercio alugam quartos para poucas horas e para a noite toda, conforme o gasto, agora é só você resolver e me escrever o dia que irei e lá conversaremos. Olha, Luiz, não vá gozar com outra aquela tua disposição, naquele dia você bem viu quanto eu também estou com saudade…" e completa: "Como cavalheiro excelso que és, peço não me fazer qualquer desfeita na presença de qualquer pessoa, principalmente da moça com quem moro, vivo graças a Deus muito bem e feliz, sem o homem se é imensamente mil vezes feliz…"
Cecília é outra das amantes. Numa das cartinhas escreve: "…espero-te hoje sem falta aqui em casa, o velho já foi viajar, se você não vier hoje, não fale mais comigo". Pelo visto, o “velho” costumava viajar bastante, pois em outro bilhete a mesma. Cecília escreve: "Veja se vem hoje de noite aqui em casa, eu te espero sem falta, vamos aproveitar enquanto o velho não vem”. E em outra: “Venha hoje aqui em casa, que o velho está viajando. Hontem de noite eu vi quando você passou mas não podia fallar porque a visinha estava na porta…".
Os encontros eram sempre acertados através das cartinhas e bilhetes, muitas vezes mandados para nomes falsos na posta-restante, um serviço em que as destinatários retiram a correspondência nas agências dos correios. Ou em encontros cuidadosos em esquinas ou nos portões do Passeio Público.
Evelina reclama: "A tua carta deixou-me triste, passei uma noite horrível sem o consolo de teus carinhos. Escuta Luiz, apezar de ver que você não pode amar-me, o meu pensamento é só em ti. Adoro-te! O teu amor foi para mim a maior alegria de minha vida".
A máquina de escrever só foi usada por uma das senhoras, que, por sinal, não deixa seu nome, preferindo o anonimato. Em cartinha muito bem escrita, revela que por duas noites Luiz a deixou esperando: "…não posso compreender o que se passa em ti e não quero absolutamente causar transtorno em tua vida. Sei que continuas as visitas na rua Comendador Macedo, o que acho justo devido ao que existe, mas quero que confesses que tens amor pela senhora de lá e não dizer-me o que não existe…".
Luízes e suas amantes existem aos milhões pelo mundo. Muito mais do que reveladoras das emoções, tristezas e alegrias de curitibanas insatisfeitas ou simplesmente carentes de companhia, as cartas ao Luiz mostram uma face da vida cotidiana que existiu e continua existindo desde sempre, sendo importantes porque sobreviveram por absoluta sorte para terem suas histórias contadas. Histórias que, com certeza, seriam a delícia e a inspiração para os contos de um Dalton Trevisan ou de meu amigo Valêncio Xavier, que vivia vasculhando a minha livraria à cata de inspiração para seus livros e artigos na Gazeta.