Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Cotidiano de Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.
Uma estranha visita ao Museu David Carneiro
Paulo José da Costa
26/07/2024 16:27
Sala da Revolução Federalista no antigo Museu David Carneiro. | Arquivo pessoal
De certa forma, me sinto um privilegiado por ter feito parte da história do desmanche do Museu David Carneiro. Um triste privilégio de que abriria mão de bom grado se fosse possível evitar essa página triste da cultura paranaense.
Mas explico porque considero um privilégio. Todos sabem que o prédio do museu foi dado em garantia de empréstimo pelo filho de David e que o Banco do Brasil acabou ficando com o edifício. O que muita gente desconhece é que o acervo do museu não fez parte da garantia. Felizmente, o acervo acabou sendo comprado pelo governo estadual (somos obrigados a bater palmas para Requião) e hoje está dignamente cuidado pelo Museu Paranaense – exceto pela parte relativa ao Cerco da Lapa, levada para o museu da histórica cidade, e papéis e biblioteca, que permaneceram com a família.
Procurado pelos Carneiro, acabei levando os 7.000 livros do historiador para a livraria, num contrato de consignação que agitou os meios culturais da cidade. Antes, tive de relacionar um por um todos os volumes, o que me deu um trabalho de um mês. Para fazê-lo, trabalhei dia e noite – literalmente – pois, além de listar os livros, precisava apreçá-los. Correndo o prazo, foi-me entregue a chave do museu para trabalhar em qualquer horário que pudesse, e aí que começa o motivo real de nossa história.
Sim, eu andei por alguns dias pelas 16 salas do Museu David Carneiro semanas antes dele ser desmontado e encaixotado, condição em que ficariam as peças por alguns anos, até terem seu final feliz.
Andar por aqueles corredores e salas com centenas de armários, expositores, vitrines, displays, camas, canhões, espingardas, uniformes, quadros e mais quadros com episódios heróicos e retratos de vultos da Pátria, tudo com uma pátina de poeira, foi uma experiência estranha. De certo modo triste, mas fascinante.
Juro que ouvi barulhos, estalos e sons fantasmagóricos, mas sempre acho que devemos ter medo dos vivos, nunca dos mortos. Então, encarei com serenidade as energias contidas nos objetos de centenas de pessoas que já estavam em outro plano e que doaram peças ao museu, seus parentes e antepassados ou aqueles que usaram aquelas armas, vestidos e uniformes – e que, imagino, não estavam satisfeitas com o destino que naquele momento se aproximava.
Foram passeios solitários, de que ainda me lembro bem, apesar de decorrerem já mais de 20 anos. Interessante é que quase realizei esse passeio com o próprio historiador no distante ano de 1972, quando viajei de Ponta Grossa para visitar o museu depois de acertar a visita por telefone. Eu era um rapazote e ele se entusiasmou em poder me receber no dia marcado. Porém, chegando no museu, na rua Comendador Araújo, encontrei o mestre de saída para assistir o filme “Independência ou morte”, aquele do Tarcísio Meira.
Perdi a visita ciceroneada pelo criador do museu, mas, em compensação, ganhei uma sessão de cinema comentada a cada minuto pelo meu guia, que me convidara para acompanhá-lo. Passou o filme inteiro corrigindo tudo: “Essa medalha não existia!”, “Esse uniforme está com a cor errada!”, “Nunca se falaria algo assim!” etc. Uma lástima que não gravei a sessão, pois teria sido uma aula de história curiosíssima e antológica. O professor David era uma pessoa querida e bondosa, e tenho a honra de dizer que privei de sua companhia durante essas quase duas horas de ensinamentos.
O museu era um primor e haverá sempre que se lamentar por ele não ter sido preservado em sua inteireza e majestade. Mas esse é o preço que todo grande colecionador paga por juntar acervos importantes e não conseguir dar a ele um destino em vida. Os exemplos saltam às centenas, sendo o de David Carneiro mais notório por sua grandeza. A epopeia que foram os 20 anos desde a morte de David até que se desse um destino às milhares de peças é bem conhecida, bastando uma pesquisa na internet.
Duas salas marcaram fortemente minha memória e não posso deixar de citar. Uma é a do escritório, que ficava nos fundos do edifício e à qual se chegava subindo uma grande escada. Lá estavam – lembro com carinho – as coleções de cartas e manuscritos da coluna “Veterana Verba” que David publicava na Gazeta do Povo, com dezenas e dezenas de volumes em ordem cronológica, tomando quase metade de uma estante – e que lamento profundamente não ter negociado com a família.
Naquela época, eu não tinha enraizada ainda a ideia de ter meu próprio acervo. Imagino hoje esse material sendo publicado, quanta informação, quanta riqueza para a história do Paraná. Lembro que esses papéis foram encaixotados e entregues à Igreja Positivista, ou Igreja da Humanidade, cujo templo ficava no museu e espero que estejam, hoje, bem guardados.
Sim, o templo da Igreja da Humanidade ficava no museu, com as janelas dando para a rua Comendador Araújo. Havia uma biblioteca estupenda com livros dos séculos XVI e XVII, obras dos iluministas Voltaire, Montesquieu e outros. Esses livros também foram levados junto com os demais itens do templo para uma galeria da cidade.
Lembro daquelas estátuas de “santos” que eram venerados, na verdade as Grandes Figuras da Humanidade. Assim, em nichos, havia imagens de Voltaire, Pitágoras, Platão e outros cultuados pelos positivistas. No centro do altar, ficava a estátua de uma mulher com uma criança no colo, sendo essa figura feminina a representação da Humanidade. Quer algo mais belo, mais simbólico e mais perfeito do que isso? Haveremos de escrever sobre os positivistas paranaenses, como o próprio David Carneiro, o professor Lourenço Branco e sua filha Clotilde, Paulo de Tarso Monte Serrat, João David Pernetta, Oscar Castilho e mais uma plêiade de grandes nomes. Os mandamentos do positivismo andam em falta neste Brasil carente de líderes com caráter, cultura, sabedoria, vontade de construir um país através da educação e do cultivo de valores cada dia mais esquecidos. Sim, a Igreja da Humanidade anda fazendo falta…