José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
A era do depoimento – ou os bifes e os cães
guardar”, como se dizia nos bons tempos analógicos, um artigo da escritora,
polemista e ativista negra Djamila Ribeiro, publicado na Folha de S. Paulo em inícios de novembro. O texto “Solidão
institucional” traz um subtítulo – “gravata”, no jargão jornalístico – que
equivale a um chute no ossinho da canela: “Será que já perguntaram quais eram
os sonhos das tias da limpeza?”.
menos escolhidas para casar, para participar, para falar e mais requisitadas
para trabalhos modestos e forçados, que desgastam todas as engrenagens de seus
corpos. Que negras e negros são maioria na faxina, na coleta do lixo e que não
são chamados pelo nome – a exemplo da “tia da limpeza” – é uma questão de fundo
que escapa a gente como os deputados federais Coronel Tadeu e Daniel Silveira,
ambos do PSL, autores de comentários de cunho racista cujo teor não merecem ser
replicados. Abriu-se essa porteira no instante em que o torturador Brilhante
Ustra foi homenageado no Câmara – lembram? Teremos de acertar contas com o
futuro por não termos subido nas tamancas contra esse disparate.
Num abrigo de Curitiba encontrei uma ex-doméstica que apanhou tanto da patroa que se tornou inválida
ou à zeladora – é de espantar mesmo os mais céticos. Rótulos caem. A gente
descobre nessas conversas com a turma que nos serve a quantidade de informações
que não chegam aos mais pobres – a existência de cotas nas universidades e o
funcionamento do Enem, dentre elas. Descobre também que não são movidos pela
apatia e acomodação, como muitos se antecipam em afirmar, lépidos em usar a
ferramenta da meritocracia. A soma de tentativas que essas pessoas fazem para
driblar as engrenagens, que não lhes dão moleza, tinha de virar estatística,
para bem da verdade.
“Eu, empregada doméstica” – uma espécie de subproduto inspirado no genial Museu
da Pessoa, cujo acervo é o depoimento de anônimos de tudo que é casta. Mulheres
que um dia trabalharam em casa de família – expressão das antigas – foram
estimuladas a contar como era a rotina entre a arrumação das camas, a preparação
do almoço e, não raro, as “passadas de mão” – um clássico da Casa Grande & Senzala. É de morrer
de vergonha. Muitas criadas esperaram a família almoçar, para só depois
desfrutar dos restos da mesa. Não raro, comiam sentadas no degrau da cozinha. Sós
– e agradecidas, como achavam justo os algozes.
assistente social de formação elevada – referência em habitação –, escutei da
mãe dela, na hora do cafezinho, as sevícias que havia passado numa mansão do
Jardim Social. Os pedaços de carne ali eram contados – e sempre sobrava um, de
propósito. Não era destinado à empregada, que o tinha cortado, temperado e
fritado, mas ao cachorro. Dog, dog, dog...
Tempos depois a procurei, em busca de uma matéria para apimentar o debate do
PEC das Domésticas – e dessa vez preferiu o silêncio. Entendi. Quem, afinal,
gosta de lembrar dos muitos anos em que viu o bife, dela por direito, ser
atirado pela janela rumo à goela do auau, numa cena tão cruel que nem Eça de
Queiroz a teria imaginado?
Santa Zita, no Uberaba, abrigo de mulheres que envelheceram como empregadas
domésticas e que perderam os próprios vínculos familiares. Outrora “moças do
interior” viram-se descartadas assim que suas costas arruinadas as impediam de
lavar camisas brancas na mão ou de esfregar a calçada com a fúria da vassalagem
do Castelo de Versalhes. Para não dizer que não falei das flores, uma trupe de
mulheres ricas salvou as zitinhas, como são chamadas, de verem a casa fechar,
por falta de recursos.
O “falar de si”, o “depor”, expressa uma catarse necessária, uma imposição para peitar o estranho século 21
um café, sábado à tarde, para se empanturrarem de açúcar, em nome dos bons
tempos. Para surpresa, o convite foi aceito. Tudo o que de melhor havia na
dispensa aterrissou na mesa. O serviço de cozinha mobilizou irmãs, cunhadas e
simpatizantes. Ao término, com a dona ainda estalando a bochecha, depois do
último brigadeiro, seguido de mais uma fatia de cuca de banana – especialidade
da anfitriã –, a ex-empregada lhe soltou os cachorros. Declamou, solfejou e
berrou todas as humilhações que sofreu. Protestou de forma intestina que não se
nega comida a ninguém – um crime lesa-humanidade. Foi seu Bacurau.
desaforos. Melhor encontrar meio termo na palavra “depoimento”, na qual cabem
os pianíssimos e os fortíssimos presentes no ato de contar uma história de vida.
De uma década para cá, pode-se dizer que os depoimentos viraram um gênero
jornalístico e literário, tamanha sua emergência. Renderam, inclusive, um Nobel
à bielo-russa Svetlana Aleksiévitch – autora de Vozes de Tchernóbil, A guerra
não tem rosto de mulher e O fim do
homem soviético, entre outros. A autora elevou uma prática que mais parecia
uma antessala da entrevista à categoria de grande arte. Svetlana “costura” as
falas, recolhidas em repetidas vezes, até que superem a repetição mecânica, o
clichê e a banalidade. A técnica se assemelha a uma escavação psicanalítica,
mas sobretudo estímulo ético, estético e erótico a provar o sabor da coragem.
da literatura, do cinema, da mitologia, de modo que eles nos ajudem a mediar
conflitos internos, migramos para o centro da cena, afirmando a nossa própria
existência como medida de todas as coisas. Grosso modo, mais e mais gente toma
a palavra e se coloca na posição de “subjetivistas” do naipe da rainha da
chanchada Dercy Gonçalves, da madrinha Hebe Camargo ou da esfinge Elza Soares –
para citar três “depoentes” que habitam o imaginário brasileiro, pela ênfase
com que falaram e falam de si. Pode gerar distorções. Mas sobretudo, tomar a
palavra, com força, tende a demarcar territórios. A voz, na primeira pessoa,
exige marcos humanitários capazes de conter tiranias. Fora com elas. Nunca mais
bifes atirados aos cães.