Opinião

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Sempre às seis, na Cocaco: a história da primeira galeria de arte do Paraná

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
20/09/2021 10:00
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Tem coisas que só os deuses sabem – por exemplo: o número de congregações de freiras existentes no planeta. Outra é quantas pessoas pensaram – e algumas de fato tentaram – escrever a história da galeria de arte Cocaco. O frenesi se justifica. Bastam 15 minutos de prosa com qualquer remanescente da fase áurea da casa para que pencas de homens e mulheres de boa vontade se voluntariem para empunhar a pena. Com perdão ao clichê, a Cocaco é um “gabinete de curiosidades”, como se dizia: aqueles míseros 70 metros quadrados fundaram a arte moderna no Paraná, e essa não é informação que se jogue debaixo do tapete.
De todas as tentativas de “botar a Cocaco no papel”, uma vem embalada com laço de fita. Partiu do agrônomo Ennio Marques Ferreira, seu fundador, em dia, mês e ano impossíveis de precisar. Melhor explicar, antes de mais nada, o Ennio.
Ainda que fosse um profissional da área agrícola, seu barato não eram os adubos, mas as artes visuais. Pintava, desenhava e fazia aquarelas quase em segredo. Na mocidade, quando morava no Rio de Janeiro do samba-canção, estagiou, de alegre, no design gráfico. Dava seus pulinhos nos cartuns, charges e nos bicos de pena dos publicitários de então. Tivesse ficado em terras cariocas, onde conheceu e se casou com sua amada Heloísa, seria hoje um verbete do jornalista Ruy Castro.
É do Ennio Marques Ferreira a adoção do nome “Cocaco”, o que por si só lhe garante um trono de glória, com anjos ao redor. Trata-se de uma escolha meio tatibitate, safa, como a deliciosa música “Bambo do Bambu”, de Almirante e Valdo de Abreu, sucesso na voz de Carmen Miranda. Ao mesmo tempo, a palavra parece saída de um poema concreto dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, bem a gosto dos anos 1950. Na prática, era o nome de um formão de fabricação germânica, vendido na Casa Hauer, no Largo da Ordem. De tanto Marques e os moldureiros falarem “me passa a Cocaco”, Cocaco ficou.
O serviço foi completo: o paranaense Ennio não só batizou a galeria como criou a logomarca, escrita à mão, ligeira como um zap, delícia de combinação de forma e conteúdo. A mesma letra inclinada à direita – típica de quem usou canetas tinteiro, mata-borrão e fez caligrafia debaixo de uma palmatória –, convertida em marca registrada da Cocaco, aparece em 18 páginas amareladas produzidas por Ennio. No cabeçalho da papelada, a pista que não deixa dúvida: “Cocaco/Tentativa de um histórico”. O documento – guardado pela família – é um rascunho, ora feito em papéis timbrados do Departamento de Assistência ao Cooperativismo da Secretaria da Agricultura, ora da Secretaria da Cultura e do Esporte, ambos lugares onde Marques Ferreira trabalhou e, como se sabe agora, economizou papel.
São manuscritos enxutos, pródigos em garranchos e correções imperativas em caneta vermelha. De tão bonitos no seu nervosismo, a tentação é publicá-los do jeito que estão. O incipit soa protocolar, mas é só aquecimento. Depois tem festa. Diz assim:
“Em outubro de 1955, um local situado ao lado da BPP [Biblioteca Pública do Paraná], Ennio Marques Ferreira (agrônomo e artista plástico), Alberto Nunes de Matos (operador de rádio, ex-viajante de laboratórios farmacêuticos), ambos funcionários da extinta Fundação Paranaense de Colonização e Imigração, fundam a ‘Marques Nunes Decorações Ltda’, razão social de uma pequena loja de molduras artesanais, instalada em duas acanhadas salas da Rua Ébano Pereira n.º 52. Era um velho prédio, térreo, em mau estado de conservação”.
O que se segue a esse introito sonolento mexe com o paladar até de quem passou a vida comendo miojos. Como já tinha revelado em sua coletânea de críticas – 40 anos de amistoso envolvimento com a arte, lançada em 2006 – o agrônomo/artista algo solene, elegante, dono de uma voz marcante, com 50 tons de graves – guardava no bolso um arsenal de miudezas, sobre tudo e qualquer coisa. Nesses escritos, segue a regra. Como que por mágica, emerge da narrativa sobre a loja de molduras [que daria origem à Galeria Cocaco], a figura de uma tal dona Irene, sem sobrenome, de quem sublocou o espaço.
Conta que a mulher é viúva com filhos, que explorava um estacionamento nos fundos e uma banquinha de jornais num corredor lateral. Morava no local, por certo sem confortos, e, o detalhe mais saboroso, “… para sustento, cerzia meias femininas para fora”. Dizem que o fazia na calçada da Ébano Pereira. Não havia contratos de aluguel nem nada, e reinava o medo constante de que os proprietários autorizassem a demolição, o que aconteceu em 1965. O aspecto de ocupação clandestina, marginal, underground da futura galeria só lhe aumenta o charme. Ainda mais ao se saber que gente como o pintor Loio Pérsio – marco do modernismo – se debruçava no balcãozinho da loja, como um reles mortal. Não era o único semideus na área a ser atendido pelo funcionário faz-tudo Nilson Burda, salário mensal de 1,5 mil cruzeiros, como confidencia um Ennio meticuloso.
Loio, um paulista meio mineiro, se mudou para Curitiba, com a família, ainda adolescente. Aqui se envolve com os movimentos culturais do Centro Inter-Americano, no Edifício Garcez, e com a turma da gravura. Prova de tudo – além das artes, milita no teatro e da literatura, sempre vários tons acima. Publica impropérios na imprensa. Incomoda os caretas. O artista e intelectual que vira freguês da Cocaco era movido a inquietações – e contra todas as evidências, tinha encontrado o endereço certo na capital para agitar: a tal molduraria estava virando galeria. Virou o homem certo no lugar certo.
A indigência da “lojinha” só não era maior porque havia uma cortininha de lona, instalada de forma estratégica, para disfarçar a poeira cósmica da oficina. Pois era ali que se escondia também a vida inteligente de “Curitiba, a fria”, em reuniões vespertinas, cheias de bossa. Fim de tarde, às 18 horas em ponto, a intelectualidade ultrapassava a cortininha e a Terra, vista dali não era só redonda – era promissora.
O Globo girou de fato. Dois anos depois, o sócio não é mais Alberto Nunes, mas o catarinense Manoel Furtado, o Maneco, de quem pouco se sabe. A “Marques Nunes Decorações Ltda” tinha passado a se chamar “Galeria Cocaco de Arte Ltda”, extraoficialmente a primeira galeria de arte moderna de Curitiba (houve outras duas, pelo menos), agora ocupando alguns metros a mais. A essa altura, depois de muitas noitadas de conversa sobre arte, política, o pintor Loio Pérsio já tinha saído detrás do balcão e, oficialmente, inaugurado a galeria com uma individual. Foi em 7 de novembro de 1957.
Um mês depois, a vez do franco-curitibano Paul Garfunkel. E aí, já era tarde. O “movimento de renovação” da arte visual no Paraná, encabeçado por Loio, tinha feito da Cocaco sua sede oficial. Era onde queria estar qualquer um que tivesse miolos e ojeriza ao suave perfume de maçã de Helena Rubinstein – campeão de vendas na loja especializada “Lá no Luhm”. Claro, tinha de fazer rodízio para entrar, pois a Cocaco era um ovo. Restava fazer ponto nos bares ao redor, o Jockey e o Zanke, ou numa de loja de discos na vizinhança.
O “movimento de renovação”, a propósito, teve seu ápice no XIV Salão Paranaense Belas Artes, em dezembro de 1957. Alcy Xavier, Fernando Velloso, Jair Mendes – todos da turma da Cocaco – se retiram do evento, de forma ruidosa, e se instalam num espaço da própria Biblioteca Pública, no melhor do estilo “a revolta dos recusados”. Paul Garfunkel rasga sua menção honrosa. Os aceitos retiram seus trabalhos debaixo de ameaça de guardas. Aceitos e não-aceitos se juntam numa mostra paralela, muito melhor do que a oficial, como se sabe. Em artigo no Diário do Paraná, do grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand, Loio chama o certame de “burrice oficializada". O texto teve o peso de um manifesto.
Epílogo. Ennio se afasta da Cocaco em fins de 1958 e vai dar saltos triplos como profissional da área da cultura. Maneco vende sua parte do negócio para o empresário Pedro Kuratz no mês de maio de 1959. A casa vai para as mãos da filha dele, a musicista Eugênia Kuratz, futura Eugênia Petriu. Ela entende que aquilo lá não era bem uma molduraria e agarra o regalo paterno na unha. A história, que coisa boa, continuou. A Cocaco teve vida longa, com endereço fixo na Comendador Araújo, até 1993. Há quem diga que nunca morreu. Acredito.
** Coluna dedicada ao homem da cultura Ennio Marques Ferreira, morto no dia 26 de agosto, aos 95 anos, em decorrência da idade.
** Texto faz parte do livro Um lugar chamado Cocaco, ainda inédito. Na foto, Ennio Marques, Manuel Furtado e Nílson Burda, durante areforma da galeria, nos idos de 1956-57.

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