Opinião

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

A natureza de Edílson Viriato

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
19/03/2022 17:09
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“Essas telas provam que eu sei pintar”, diverte-se o paranaense Edílson Viriato, 55 anos, diante da série Diário de bordo – uma pintura por dia. A exposição – uma resposta sem ressentimento aos que fazem pouco caso das habilidades técnicas do artista – acontece em julho próximo, na cidade de Blumenau, Santa Catarina, e sela um encontro com “paisagens comportadas e virtuosas”. Causa estranheza. Cenários bucólicos são, afinal, elementos traficados à poética desse criador, conhecido pelas produções iconoclastas, com referências à cultura sadomasoquistas, de caráter expressionista e provocador. Um tipo que morde e não assopra.
O flerte com o bom-mocismo, digamos, começou ainda antes da pandemia, em 2019, mas se reforçou nos muitos meses de isolamento. Viriato abraçou sem poréns as recomendações sanitárias. Fechou o ateliê-galeria-escola que mantém no bairro do Rebouças, em Curitiba, e se trancou em casa, a algumas quadras dali. Começava os trabalhos nas primeiras horas da manhã e, conta, permitiu-se pintar temas mais clássicos, como se mandasse sinais de fumaça ao público necessitado de bons agouros. As composições são ternas, quase um bálsamo em meio às tensões em série que metralham a humanidade. Pontes, bosques, prédios da Belle Époque foram retratados em registros cotidianos – mostram turistas e estudantes nos primeiros planos, flagrados em instantes mágicos de felicidade.
As imagens nasceram das inúmeras andanças do artista pela Europa, no passado, em especial pela Espanha, Alemanha e Itália. Seriam um intervalo lúdico, em meio a uma carreira marcada pela polêmica, não fosse um detalhe: Diário de bordo é uma espécie de hiato no meio de uma produção cheia de som e fúria, cujo volume e velocidade durante a pandemia vêm para confirmar a hiperatividade não-diagnosticada de Viriato. Exemplo… paralelo às paisagens com pinta de cartão-postal, lançou-se de 2020 em diante à estiva de montar colagens, um gênero com o qual tinha apenas flertes sazonais. Como em se tratando de Edílson, nada é módico, a coleção de colagens beira 1,2 mil imagens. O efeito Gremlins se deu graças à reprodução digital, numerada, à moda das gravuras. Para produzir, picotou sem dó sua coleção de revistas importadas. A informação do que andava inventando, se espalhou entre amigos e conhecidos, que passaram a deixar pilhas de magazines na portaria do prédio, à guisa de ajudá-lo.
“Enquanto” as revistas doadas não apareciam, Edílson criou versões em pintura para as mesmas colagens, no melhor do estilo variação para o mesmo tema. Novamente, o resultado é na casa das dezenas. Detalhe: a série dentro da série é, com folga, o melhor dos frutos da pandemia no farto repertório de Edílson. Alegres, pop, coloridas, as telas-nascidas-das-colagens são como um passeio na roda gigante, não raro desgovernada. São para paladares fortes, e dialogam com a produção de Beatriz Milhazes. Não causa espanto se apontarem um novo capítulo na biografia do paranaense.
“Se eu morrer e você achar esse caderno, saiba que foi escrito no dia mais triste da minha vida”, registrou o artista, num de seus escritos da pandemia. Andou acabrunhado de fato. A declaração provoca um jogo de sombra com o estilo solar de Viriato. Recentemente, um pesquisador da Universidade de São Paulo, estudioso da homossexualidade nas artes, disse que o considera o mais alegre dentre os artistas que investiga. Refere-se às performances do paranaense na internet, dançantes, explosivas, e à própria obra em si, sempre dotada de jujus e balangandãs. Edílson, contudo, considera-se em transição na vida e na obra, um percurso que não se dá sem temperos de desilusão. “Minha produção é sempre autobiográfica”, pontua. Ressente o silêncio em torno da produção de um nome como Carlos Eduardo Zimmermann (1952-2018), para citar um dos nomes que, acredita, estão em processo de apagamento. Pensa que terá o msmo destino. Lamenta a ingratidão e a desmemória – e em segredo, observa as contradições do mercado de arte.
Edilson Viriato com obra autoral.
Edilson Viriato com obra autoral.
“Nunca recebi um obrigado”, lamenta o artista que está prestes a completar 40 anos de carreira. A conta está certa, ainda que pareça exagerada. Edílson vivia em sua cidade natal, Paraíso do Norte, na região de Paranavaí, Norte Novo do Paraná (a mesma do padre Reginaldo Manzotti e do chef Délio Canabrava), quando, aos 15, pediu ao pai que lhe desse um curso de pintura como presente de aniversário. O pedido não foi saudado com fogos de artifício, mas ele venceu a parada. Ganhou uma tela, três tubos de tintas e ingresso garantido no ateliê de Marize Canabrava. Como lhe faltavam cores, ofereceu-se para limpar as paletas dos outros alunos, ao fim do expediente. De sobra em sobra, conquistou um arsenal de cores. O resto, já se sabe: não passou despercebido pelas sacristias de Paraíso. Anos depois chegaria a Curitiba, para uma carreira que não pediu licença.
Mas é passado. Os imperativos dos dois últimos anos, inclusive, o levaram a traçar cenários futuros, talvez fora de Curitiba. Pensa em se mudar para a Europa ou para o Nordeste, em busca das próprias raízes cearenses. Também deve encerrar um dos ciclos mais importantes de sua carreira – o curso livre que oferece há quase três décadas e pelo qual, calcula, passaram cerca de 300 artistas, incluído nomes de pra, como Marlon de Azambuja. Como cada aluno permanece em média cinco anos no ateliê, o vínculo se tornou forte. “São minha família”, resume, sem esconder a emoção.
Dos obstáculos daqui para frente, o mais difícil é saber que fim dar a sua coleção autoral, ainda hoje à espera de um levantamento. Prolífico, incansável, tomado pela chama da vida, Viriato guarda consigo um impressionante museu pessoal. Todos as fases estão ali, provas de sua capacidade de criar polêmicas, elogios, admiração e recusas. Nem sempre o que faz é palatável, daí ter ganhado muitos prêmios e vendido poucas obras. Santos em plena transfusão de sangue, diabinhos com dentes afiados, anjos safados e dóceis ursinhos em poses eróticas, entre outros temas, não são propriamente o que a maioria dos compradores costuma levar para casa. A propósito, poucos artistas costumam olhar sorrindo para o que realizam, mas a regra não se aplica a Viriato.
“Quando você expôs na Tate Gallery?”, ouviu, dia desses, de um curador internacional. Achou a pergunta engraçada e informou que “nunca, ué”. O fato, mais do que pitoresco, ilustra a posição muito peculiar de Viriato no circuito das artes, fonte contínua de confusão, dentro e fora do país. A carreira de Viriato é propositalmente errática, artesanal, uma lojinha que ele mesmo administra. Podia ser diferente, admite. Ele chamou atenção quando, com pouco mais de 20 anos, despontou com barulho na Bienal de São Paulo de 1991. Estavam lá os monstrinhos libidinosos, personagens que tinham arregalado os olhos até de nomes que selaram o modernismo no Paraná, como Fernando Calderari, seu professor na Escola de Música e Belas Artes.
Pronto, ganhou o posto de enfant terrible, ou Jack, como costuma chamá-lo a pintora e escritora Iris Bigarella, sua ex-aluna. Noves fora, a visibilidade lhe rendeu bons convites para trabalhar com grandes galerias e mesmo em instituições estrangeiras. Mas Viriato não esconde – tinha sonhos pequeno burgueses, como casa, carro e mínima solidez financeira, importantes para um jovem sem herança. Preferiu ficar na capital paranaense, levar adiante o sonho de lecionar, apostar nas possibilidades regionais. Só não ficou mais sossegado porque não o deixaram em paz.
O artista soma oito anos de andanças pelo circuito artístico de Berlim – onde chegou a ter ateliê – e participação no circuito internacional de mostras que tratam de diversidade sexual. Mesmo assim, manteve-se no posto de terceira via. Administra a própria carreira em 90% dos casos. Não esquenta cadeira em galerias, o que lhe garante autonomia de temas e materiais. Perde e ganha quase na mesma proporção. Poderia ter passado pela Tate Gallery, entre outras, como lhe questionaram. Desde 17 de fevereiro, por exemplo, participa da mostra Every moments counts – Aids and its feelings, no Museu Henie Onstad Kunstsenter em Oslo na Noruega. Dentre os nomes que participam da exposição está o norte-americano Keith Haring e o brasileiro Hudinilson Júnior. São 60 cabeças coroadas ao todo. Equivale a jogar no time dos sonhos. Mas nada que o abale. Ativo em tempo integral, continua lotando as salas de seu ateliê com telas gigantescas, coloridas, como se ainda limpasse as paletas das senhorinhas de Paraíso do Norte. Sim, Edílson Viriato é uma força da natureza, e contra isso, não há quem possa.