José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
A paixão de Fernando Góis
José Carlos Fernandes
15/12/2020 21:06
Assisti a uma pá de ordenações ao longo da vida. Raro uma cerimônia dessas que não cause impressão. São um redemoinho de ladainhas, incensos e óleos – aparatos para que o Espírito Santo desça e faça o serviço. Mas nenhuma das óperas litúrgicas do meu currículo se iguala à que presenciei no feriado de Finados, em São Félix do Araguaia (MT), a 2.355 quilômetros da velha Água Verde. O ordenante era o bispo italiano dom Adriano Ciocca, enviado dos deuses para substituir dom Pedro Casaldáliga. O ordenado – Fernando Francisco de Góis, 62 anos –, o “Fernando da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros”, para os que o amam; o “monge pé-de-chinelo”, para os tolos.
Fernando se tornou muito cedo um pobrezinho de Assis. Seu patrimônio se resume a um par de sandálias e a uma sacola de pano, que usa atravessada por cima das camisetas-brinde de posto de gasolina. Para receber o sacramento da Ordem, não alterou o figurino. Usou túnica feita de saco de estopa e havaianas para combinar. Na hora de se deitar no chão e pedir um help a todos santos – clímax do ritual – dispensou as alfaias e o fez sobre uma caixa de papelão. Ao seu lado, tinha os índios do Araguaia, deficientes, infantes sem realeza e toda sorte de deserdados. Oficialmente, Fernando se tornou o “vigário dos empobrecidos, excluídos e marginalizados” da prelazia, um padre Lancelotti da Amazônia.
No dia seguinte, não se deitou em berço esplêndido. Celebrou a primeira missa numa roça à prova de GPS. Chegar lá foi uma travessia bíblica – fomos guiados pelas nuvens. O quintal em que se deu a celebração abrigava 40 pessoas, agora ovelhas do padre Góis. Galinhas e porcos circularam sem censura pelo altar improvisado. Em arte, diz-se que a beleza é um treco indefinível, mas que a gente a identifica quando a encontra. Foi o sublime aristotélico ver o Fernando celebrar numa mesa de cozinha pensa, com castiçais de garrafa pet, acolitado por uma galinha perneta. Já vi Veneza. E vi a missa do Araguaia – agora posso morrer.
Essa história começou num domingo qualquer do alucinado 2020. O telefone tocou. Do outro lado estava o Fernando – meu conhecido de uma eternidade e mais um dia. Foi breve. Contou que estava vivendo em Confresa, nas rebarbas de São Félix. E me convidou para seu presbiterato. “Não entendi”. Ele desenhou pro incrédulo. Afirmei que ia, “claro, né”, mas o fiz com sorriso amarelo – não sei se ao calcular a distância entre CWB e MT ou se pelo espanto daquela notícia.
A surpresa não tinha a ver com ele, um homem de vida santa, comprovada em cartório. Só Nosso Senhor sabe quantos meninos em situação de rua acolheu, batendo por aí seu chinelinho em petição de miséria. Se alguém merecia ser padre, esse alguém era ele. Mas todos os que o conhecem sabem de sua aversão a títulos. Achei que o sol inclemente ou alguma erva da floresta tinham lhe afetado o juízo, só que não. Meu amigo tinha se dado ao direito de acatar um chamado divino, recebido ainda menino, lá pelas bandas de Paranavaí (PR), mas que ficou pra depois.
Cá entre nós, o Todo Poderoso pelejou para convencê-lo. Desde 2015, quando Fernando se despediu de sua obra máxima, a Chácara de 4 Pinheiros, tornaram-se dois perdidos na noite suja. Perambularam pelo menos 3 mil quilômetros de estradas, em companhia dos trecheiros. Dormiram na região da Sé, em Sampa, tendo o céu por testemunha. Militaram na Cracolândia. Até que “Ele” o convenceu a dar um pulinho no Araguaia. No meio da selva, entregaram-se, enfim, como dois pagãos. Mas Fernando fez lá suas exigências – a festa de enlace tinha de ser na base do papelão e da estopa, cercada de pequeninos. Que Deus haveria de discordar?