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José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

A poesia urgente de Amarildo Anzolin

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
22/12/2022 15:02
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“A poesia está morta, mas juro que não fui eu”. A blague protesto de José Paulo Paes, apropriada em música por Zeca Baleiro (“Mundo dos negócios”), continua mais cortante do que nunca. O atestado de óbito da poesia custa a sair, porque os poetas não baixam a guarda, nem a pau. Lembram da pandemia que nos reduziu aos chiqueirinhos domésticos por dois anos e pouco? Pois é – a poesia andava por lá, pirilampo, entre os litros de álcool para desinfetar as compras e o medo do espirro de um vizinho. Atire a primeira pedra quem não buscou um minuto de salvação, mesmo que num verso barato de amor.
O poeta paranaense Amarildo Anzolin, 52 anos recém-completados, faz parte da turma que não cochila. Abastece o mundo de poesia, estejamos armados contra ela ou não. Está prestes a completar uma trilogia da sua obra – em verso, em letra de música e em imagem. São livraços, ficam em pé e atestam que o sujeito trabalhou pesado. AA é um selfie made man. Criou seu próprio selo, o “Água quente”. Compila, edita, manda imprimir, vende, faz malote. Uma vez por semana, pode ser visto na fila de alguma agência dos Correios, atendendo a pedidos. Muitos dos compradores são velhos conhecidos dos porões do rock and roll, ou das rodas de MPB – gente que conheceu no finado Bar do Cardoso, no bairro São Francisco, onde a poesia era servida com fartura. Os demais fregueses são jovens recém-chegados ao mundo da literatura em verso, doidinhos para aprender como é que se faz. Muitos descobrem Anzolin pelas redes e pronto, dá liga e dá link.
Em tempo – Amarildo soma oito livros, desde sua estreia em meados dos anos 1990. Começou com Co-Lapsos, de 1995, seguido de Igual (1998), Única coisa (2000), Eu também (2003), Cânone (2007), Evite permanece nesta área (2012), Hospedaria de cuidados paliativos (2016), Central de despachos Nossa Senhora das Graças (2021). O nono trabalho – Amarildo Anzolin (1995-2022) é uma antologia, ou “ontologia poética”, como costuma trocadilhar, com uma seleta dos melhores momentos de lá até aqui. “Tem coisas que achei melhor agora do que quando escrevi”, confidencia. Relançados nesse pós-tudo em que vivemos, cheiram a recém-nascidos, contam um pouco da história do autor. Aperitivo:
VOCÊ QUERIA
você queria ter feito este poema
mas não queria estar na minha pele
você elogia os meus passos
mas dá de ombros ao que eu passo
você queria vibrar com o gol do meu time
mas não queria torcer pra ele quando perde
você queria falar este poema ao vivo
mas não ficar de joelhos pra lua aos uivos
você se encanta com o meu jeito alado
mas não salta da janela na piscina do asfalto
tirar a roupa como quem amputa um braço
mas quando chego não banca um abraço
você diz que cobiça meus olhos verdes
mas não quer saber o que eles veem
sonha que alguém leia o que escreve
não lembra que a vida é o que se esquece
você diz que admira minha calma
mas não se importa com meu cansaço
você queria o meu lugar ao sol
mas não sente a sua luz em febre
você queria ser quem eu sou
mas sem fazer ensaio só o show
Amarildo Anzolin não é um piá de prédio, mas um guri de Santa Felicidade, sobrevivente de um mundo que não existe mais. “Meu avô era dos que faziam vinho em casa”, ilustra. O bairro dispensa apresentações. Vem de família italiana e, tudo indica, cresceu abastecido de polenta, radite, frango frito e risoto. Programou-se para ter uma vida normal, ela de bóbis, ele de terno. Gurizote, quase não saía de Santa – para que diabos? Na colônia-país cursou técnico em Química Industrial e depois Química na Universidade Federal do Paraná. Trabalhou dois anos no ramo até ser derrotado por uma... renite alérgica crônica, a legítima peste negra das terras frias e a quem devemos a graça de ter um poeta tão prolífico.
É fato que o químico estava ameaçado pela literatura fazia tempo. Anzolin era ainda ruivão e um imberbe dos inclassificáveis anos 1980 quando uma prima – doida varrida por vinis – lhe botou nas mãos o LP Uns, de Caetano Veloso. “Ah, isso é poesia?”, lembra de ter dito à parente, assim que bateu os olhos nas letras de “Eclipse oculto”, “Peter Gast” e “Você é linda”... Foi cooptado, “tipo” disco voador. Não teve mais volta. Logo começou a escrever, tornou-se um vencedor de pódios no concurso de poesia da escola. Até que ficou chato e exigente com o que produzia, um percurso que o levou a Co-lapsos, seu livro de estreia pelo selo Ócios do Ofício. Embora não diga com todas as letras, é grato à incompatibilidade entre suas narinas e aqueles elementos estratosféricos todos – abandonou a química, tal como fez outro poeta, José Paulo Paes, e outro compositor, Lenine. Com o neuropsiquiatra Oliver Sacks, que fez da tabela de periódicos uma inspiração romanesca, esses senhores explosivos formariam uma confraria das mais ruidosas.
“Ruidosas” é mesmo a palavra. Ser poeta em Curitiba, nos anos 1980 e 1990 – período que marca o antes e depois de Paulo Leminski – era sinônimo de misturar poesia e música e performance; de ouvir Bod Dylan, Lou Reed e Leonard Cohen; de curtir os irmãos Marcos e Roberto Prado, Antônio Thadeu Wojciechowski, Sérgio Viralobos... De ter amigos como o poeta Mário Domingues. Implicava em estar na cidade, com os dois pés fincados no paralelepípedo, o que corresponde a não ter medo de chuva, escuridão, polícia e temperaturas polares assim que o relógio bate seis da tarde.
Nem é preciso perguntar ao Anzolin se a noitada foi boa.
O fato é que em 2007, de braço dado com sua companheira Karin Bianchini, partiu para São Paulo. Foram dez anos de exílio. Ele estava atraído pelas possibilidades de atuar em publicidade – o que de fato ocorreu – e de encontrar um ambiente mais favorável para mostrar sua poesia. Não se decepcionou. Mal sobrava tempo para marcar presença em tantos saraus, mostras e lançamentos que a Pauliceia Desvairada oferece. Entre idas e vindas para visitar parentes, via o cenário músico-poética de Curitiba derreter, até se tornar irreconhecível. “Até o sotaque mudou”, arremata.
Não peçam a Amarildo um diagnóstico: ele prefere descrições. Dia desses, ficou animado em ver tanta gente sentada na calçada, na frente dos bares, numa combinação perfeita para as trocas culturais, como ocorreu nos primórdios. Mas durou pouco – um centro médico ou coisa que valha sempre ocupa esses lugares. A velocidade urbana que encanta também é a que provoca vertigem no poeta. Pergunta-se se haverá lugar para ele e eles, se a poesia está mesmo morta, coisa e tal.
O poeta pisa leve, feito um gato. Descreve-se como um otimista, reivindica utopias. Destila suas opiniões em gotas. Seu ponto de vista é de que o mercado da poesia inflacionou, dadas as facilidades de publicar e à sanha dos editores de ocasião. Muitos autores, sugere, poderiam esperar mais um pouquinho, de modo a evitar tantos versos prematuros, puro entretenimento. O excesso de engajamento também lhe azucrina, pois vem quase sempre em detrimento da forma. “A linguagem tem de ser sutil”, ensina. De resto, tenta entender esses tempos que chegam sem pedir licença.
A pergunta é se estamos num momento poético da incerteza. A resposta abre as portas da percepção – os massacres ao livro de poesias de Adriana Calcanhotto, por não borbulharem as tais lutas do presente, como se disse, arma apontada; o bom trabalho de Régis Bonvicino e Rodrigo Garcia Lopes; a poesia brasileira à deriva. “Faz falta a crítica”, diz, em coro com pencas de escritores. Por fim, um desejo de homem maduro: bem gostaria, não esconde, que as músicas não fossem escutadas por apenas 15 segundos, interrompidas pelo vaivém típico da internet. “Nesse momento, um grande artista passa pela gente – podemos nem perceber”. Poetas sabem das coisas.