José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

A revolução das enciclopédias

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
23/08/2020 19:00
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Não sei você, caro leitor, mas já encontrei uma
pilha de enciclopédias Barsa ao pé de uma lixeira – aqui na velha Água Verde.
Outra vez, recordo de ter visto uma coleção semelhante, na frente de um
daqueles prédios de passado elegante, na Praça Osório. Fucei e descobri a quem
pertenciam. Guardarei segredo, em respeito a um falecido. Estavam ali – à mercê
dos carrinheiros, mas também da chuva e do pipi dos cachorros – por decisão de
um herdeiro, incomodado com o espaço que esses volumes ocupam.
Não são casos isolados. O descarte ocorre toda hora,
em escala industrial. Em alguns casos, tem-se um final feliz. Para não dizer
que não falei das flores, livros jogados fora deram origem a uma biblioteca de
perto de 6 mil itens na Vila Torres; e a outra – um tanto menor – na Associação
de Catadores Mutirão, no Sítio Cercado. Ainda que colocar uma Larousse inteira
ao lado do saco de papel higiênico seja um flagrante ato de barbárie, há de se
tentar entender por que diabos os outrora felizes proprietários de
enciclopédias – essa invenção do século 18, que dividiu em dois a história do mundo
– não sabem mais o que fazer com esse patrimônio.
Não se trata uma equação impossível. As wikis da internet plantaram a certeza de que são uma sucursal da Nasa – uma fonte inesgotável de dados atualizados e da maior qualidade, garantia de ida e volta à Lua, sem zonas de turbulência. Em contrapartida, os impressos usados para consulta de verbetes ganharam o rótulo de entulho. Qualquer leitor minimamente sambado sabe da quantidade de porcarias eletrônicas envelopadas como “a última moda em Paris” – uma piadinha de antigamente. Mas tudo bem – mesmo que as boas enciclopédias tenham sido produzidas de forma coletiva, com especialistas por área, ficaram desatualizadas e muitas não se prestam mais às pesquisas escolares. Porta da rua, serventia da casa. Peninha.
Há de se tentar entender por que diabos os outrora felizes proprietários de enciclopédias não sabem mais o que fazer com esse patrimônio
No mais – ocupam metros de estante, em apartamentos
cada vez menores, com duas crianças no máximo, sem mães e empregadas a postos
para lidar com o pó que as Barsas acumulam, pois não chegaram a inventar o
modelo autolimpante. Some-se ao 7 a 1 imposto às enciclopédias a acusação pedagógica
de que incentivavam péssimas práticas educacionais – a cópia mecânica, à mão,
de temas que iam da Guerra do Peloponeso ou à declaração da maioridade de dom
Pedro II –, agora substituídas pelo “copia e cola” da internet. Ficou mais
fácil. Nem é preciso ler.
Desculpem o conservadorismo. Bato palmas para entusiastas da web, como Steve Johnson, ao dizer que um infante qualquer fica mais esperto usando a rede do que plantado na frente da tevê, por exemplo, ou, por analogia, fazendo cópias da Conhecer ou da Salvat. Mas há de se considerar que o preço pago pela nova ordem é o da naturalização do plágio. Quem dá aulas sabe a lenha que é explicar para meninos e meninas – os mimados e os não – de que se trata de uma prática criminosa. O olhar de paisagem que alguns nos devolvem beira o escândalo. Sem falar do que é ainda pior: é imenso o risco de encontrar nas wikis informações plantadas por um monarquista amargo e não por uma autoridade em Pedro I ou Pedro II, como a Isabel Lustosa ou a Lilia Schwarcz. Mas estudar e, de resto, viver é mesmo arriscado.
De volta às enciclopédias, outro dilema. Os que resistem colocá-las da porta para fora costumam encontrar dificuldades homéricas em doá-las. Não há escola pública ou privada, Farol do Saber ou biblioteca de firma – as poucas que se prestam a tanto – que não tenham sua cota de livros enfileirados, de A a Z. A insistência para que fiquem com “mais 20 volumes” é tamanha que muitas dessas instituições tiveram de colocar um bilhete no muro: “Não aceitamos enciclopédias”. Ou no site – caso da prestigiosa Freguesia do Livro, das ativistas da leitura Jô Bibas, Ângela Duarte e Maria Luiza Mayr. Motivos, de sobra: o que deveria ser doação de livros virou repasse de problemas. Se der bobeira, o trio tem de pagar o preço das estantes limpas em centenas de lares em Curitiba e Região Metropolitana. E elas mesmas não encontram para onde – nesse imenso país – direcionar tantas coleções. Já o fizeram, e bastante, por anos, sendo agora merecedoras de todas as indulgências papais.
Resumo da ópera: 1. Os donos de enciclopédias se conformam e arrumam um lugar em
casa para elas; 2. Colocam os livros
na lixeira e fazem figas para que o carrinheiro e a vergonha passem logo –
quando muito; 3. Encontram um
receptor – com sorte um arquiteto ou um decorador, pois muitas encadernações
têm sua última morada em bares vintage,
ao lado de tábuas de lavar roupa, lampiões, televisores a válvula e gravuras do
Anjo da Guarda atravessando uma ponte com dois pimpolhos, em meio ao um
temporal; 4. Descobrem um
pesquisador ou pesquisadora interessados – caso aqui de casa. A jornalista e
professora Ariane Carla Pereira, da Unicentro, em Guarapuava, achou na estante
cultivada por minha mãe, por décadas, material de que precisava para sua tese
de doutorado. Foi um dia feliz.
A morte anunciada das enciclopédias é de fato uma
história triste. E tão triste quanto é o desconhecimento sobre a revolução que
promoveram. Ainda tenho na memória a visita do vendedor da Barsa. Eu usava
conga azul-marinho e ele camisa branca e gravata, Trim nos cabelos e tinha
cheiro de Acqua Velva. Depois de mostrar aos meus pais a qualidade intelectual
do produto – que perguntássemos qualquer coisa, a Barsa responderia. “Ilha da
Madeira? Pois está aqui” –, deu provas da integridade física do que estávamos
comprando. Pegou um volume e o segurou no ar, com a mão numa única página. Tinha
pedigree, como cachorro segurado pelo cangote. Nem as havaianas, as legítimas,
eram tão resistentes. O vendedor não mentia. Fora um volume emprestado por
primos e nunca devolvido, e duas lombadas avariadas, nossa coleção tem quase 50
anos e resiste até aos cupins.
Quanto à revolução da leitura promovida pelas enciclopédias, refiro-me às coleções da Editora Abril, pródigas de 1968 em diante, até a década de 1980, quando o modelo mixou. Para quem não lembra, as enciclopédias chegam ao comércio em fascículos, semana a semana, até formar um volume. A capa dura era vendida na sequência, fechando o ritual de ver a coleção, vejam só, roubando espaço nas prateleiras, pouco a pouco. As visitas elogiavam. Enchiam os olhos mais do que as cristaleiras. Sei bem, pois tínhamos uma banquinha de revistas e acabamos ficando com pencas de encadernações que alguns fregueses encomendavam, mas não vinham buscar. Sabe o fiado? Pois é. Temos de tudo – além das clássicas, a Agulha de Ouro, Livro da Vida, Medicina e Saúde, Bom Apetite...
A morte anunciada das enciclopédias é de fato uma história triste. E tão triste quanto é o desconhecimento sobre a revolução que promoveram
Só me dei conta do modelo extraordinário da venda em
fascículos tempos depois, ao entrevistar um ex-funcionário da Abril, Ottaviano de
Fiore, morto em 2016. Quando o conheci, em 1997, por intermédio do escritor
Valêncio Xavier, trabalhava na Secretaria de Política Cultural do governo FHC e
emprestava aos burocratas de Brasília sua experiência na popularização da
leitura. Não havia nome melhor no mercado. De Fiore, quando na Editora Abril,
tinha conseguido com que pais da classe média baixa passassem nas banquinhas de
revista e levassem para seus filhos os capítulos avulsos – coloridos e em papel
couché – de futuras enciclopédias.
Folheá-las era tão divertido quanto assistir a Batman & Robin, Jeannie é
um gênio
e Terra de gigantes numa
única tarde. Muitas primeiras gerações familiares de profissionais da saúde ou
das engenharias, por exemplo, foram formados a partir dessas coleções. Quem
acha pouco, que vá se danar.
A propósito, esse projeto editorial que ajudou a
mudar o cenário educacional brasileiro é objeto de estudo do historiador Mateus
Henrique de Faria Pereira – da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Os
dados que levantou atropelam a gente. Entre 1968 e 1982, a Editora Abril
colocou na praça 200 coleções. Vendeu 1 bilhão de fascículos e 11 milhões de
enciclopédias, fora romances, discos e 4 milhões de exemplares da coleção Os pensadores. Platão ocupou a sala de
100 mil lares brasileiros apenas nos primeiros 15 dias de vendagem. À época,
pode-se apostar que não o colocaram ao lado da Qboa e do Ajax, no armarinho da
cozinha. Agora, quando as enciclopédias ganham as lixeiras, resta concluir que
alguma coisa está mesmo fora de ordem.

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