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José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

“Antes e depois da filha de Xaguana”

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
03/02/2022 18:06
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Rosy de Sá Cardoso dedicou mais de 60 anos à imprensa paranaense. | Albari Rosa/Arquivo/Gazeta do Povo

Em junho de 2008, publiquei uma reportagem com o perfil de dona Rosy de Sá Cardoso, então com 82 anos, com o título "Antes e depois da filha de Xaguana". Na data de hoje, 3 de fevereiro de 2022, em razão de seu falecimento, resgato aqui o texto, que conta um pouco de sua vida e de sua importância ao jornalismo paranaense, como forma de homenageá-la:
Reportagem publicada em 2008, na Gazeta do Povo. Foto: Reprodução
Reportagem publicada em 2008, na Gazeta do Povo. Foto: Reprodução
“Acho que vou mandar aumentar
a tiragem”, avisou o jornalista Francisco Cunha Pereira Filho,
diretor-presidente da Gazeta do Povo, ao bater o martelo para a contratação de
Rosy de Sá Cardoso, nos idos de 1977. Não se tratava de uma mera formalidade.
Ao desembarcar no jornal da Praça Carlos Gomes, Rosy já era “mais conhecida dos
que os paralelepípedos” – como ela mesmo costuma brincar. Carregava 30 anos de
imprensa nas costas. Não lhe faltavam predicados para concorrer com as
principais ruas de Curitiba.
Era de família tradicional – seu avô atendia por ninguém menos do que João Gualberto Gomes de Sá Filho, um dos heróis paranaenses na Guerra do Contestado. Na mocidade, Rosy abalou a capital ao dar de ombro para os brasões e virar cantora de rádio, chegando a ganhar nota 10 no programa de calouros do tirano Ary Barroso. Por fim, fora a primeira mulher no estado a ter registro profissional de jornalista, numa época em que as redações funcionavam como grandes e esfumaçados Clubes do Bolinha.
A carreira de Rosy
na imprensa começou em 8 de junho de 1948, quando publicou a primeira matéria
assinada no jornal O Dia. Em 1º de agosto daquele mesmo ano ganhou registro em
carteira, o que parecia possível apenas em tragédias do cinema noir. Em
Curitiba, mulher não usava nem calça comprida em público – tabu que Rosy também
se encarregou de derrubar –, quanto mais freqüentar um ambiente com três homens
por metro quadrado.
“Cantora e
jornalista, xi! Rosy, pior que isso só prostituta”, sapecou-lhe certa vez o
“colega de Remington e lauda”, João Dedeus Freitas Neto. Fosse vivo, Freitas
estaria hora dessas à roda de Rosy – era seu grande amigo, mas não era de
perdoar um gracejo. Ainda mais agora, quando a neta do coronel comemora 60 anos
de jornalismo – na ativa. Foi uma lenha.
Rosy recebeu
educação cheia de prendas, tinha uma bela figura, falava um francês lascado de
bom e fazia o tipo recatada. Mas a criatividade, essa indomável, deu de tirá-la
do mundo dos bordados e das rezas para conduzi-la à sangria desatada do
jornalismo. De certa feita, ainda garota de ginásio em Paranaguá – cidade onde
viveu até a década de 40, com a família – teve de fazer um daqueles
trabalhinhos mandrakes sobre café. Colocou pó no meio dos manuscritos, fazendo
exalar aroma à medida que a professora os folheava. Dá para afirmar que seguiu
pela vida espalhando o perfume do café por onde quer que passasse. Nada do que
faz passa despercebido.
Dona Rosy, como era conhecida, na antiga redação da Gazeta do Povo.
Dona Rosy, como era conhecida, na antiga redação da Gazeta do Povo.
Ouvi-la falar de
suas andanças pelo rádio, pelo colunismo social e particularmente pela
televisão é melhor do que Sessão da Tarde em dia de temporal. Rosy pisou num
estúdio pela primeira vez, em 1961, para fazer um programa de variedades do
qual mal se lembra o nome. Era faz-tudo: contra-regra, produtora, roteirista e
apresentadora. Povoou o estúdio de carteiros no programa sobre cartas,
recebidos ao som de Isaurinha Garcia (“Quando o carteiro chegou...”); e trouxe
a quituteira dona Catarina para tratar de comida. “O fogão usado em cena era
emprestado do Hermes Macedo. Acabava e a gente corria devolver” – “a gente”, no
caso, era ela mesma. Naqueles dias, a Tupi tinha de tudo, menos sossego.
Quando o projeto
acabou por falta de patrocínio, a jornalista fez o que sempre fazia nessas
horas: partiu para outra, de preferência de avião. Arrumou as malas – uma de
suas especialidades – e ficou seis meses estudando na Fundação Getúlio Vargas,
no Rio de Janeiro. Em 1965, moraria seis meses na França, cursando Relações
Públicas. E no final dos 60 conheceria os Estados Unidos, durante um simpósio
para mulheres jornalistas. Ao todo, esteve na terra do Tio Sam cerca de 15
vezes – na última, já octogenária, dirigiu horas a fio pelas melhores
autopistas do planeta.
Rosy de Sá Cardoso, em imagem de 2008, mostrava em mapa os países em que já esteve.
Rosy de Sá Cardoso, em imagem de 2008, mostrava em mapa os países em que já esteve.
Impossível separar
a jornalista Rosy da viajante Rosy. Ela já esteve em 86 países – 86 em 82 anos,
faça-se as contas. Puxou ao pai, Jayme, e viajou por ele. Amante de viagens, o
chefe do clã morreu prematuramente, aos 41 anos, de septicemia. Se bem se
lembra, a primeira ida ao estrangeiro foi a Buenos Aires, em 1956. Não parou
mais. Em companhia da irmã Regina – morta em 2003 – girou mundo. Ficaram
conhecidas como “as irmãs voadoras”.
Caso um dia decida
escrever o que viu por aí em mais de meio século de aeroportos, vai pôr asas à
imaginação de muita gente. Em seu álbum de retratos, por exemplo, é possível
vê-la ao lado de ninguém menos do que Fortino Mario Alfonso Moreno Reyes, o
Cantinflas, em 1959. “Peguei um táxi, perguntei onde morava o humorista e me
mandei para lá. Foi a primeira vez que usei um interfone. Ele me atendeu no
jardim da casa”, lembra.
A independência
dessa moça de fino-trato se manifestou quando tinha 14-15 anos. Os Gomes de Sá
sabiam que a filha era inteligente e hábil, como diz sua prima – a escritora e
pesquisadora Maria Theresa Brito de Lacerda. “Era incrível. Ela lia, escutava
novela de rádio e fazia tricô ao mesmo tempo.” Mas havia algo mais. Rosy – como
qualquer menina de sua idade – cantarolava pela casa, e bem. O gogó acabou
mudando o rumo de sua vida.
A mãe – dona
Xaguana – notou que a filha levava jeito para o canto e puxava o coro dos que
pediam uma palhinha a Rosy. Tudo em família. O reverso veio no dia em que a
aprendiz levou um pito de um professor – ele a chamou de “desafinada.” Não
precisou dizer duas vezes. Rosy saiu de braço dado com uma prima e decidiu
cantar num programa da Rádio Difusora de Paranaguá. Foi piano e voz. Para quem
se limitava a uns trinados na sala do sobrado, aquilo virou o escândalo da
Serra do Mar. Nos anos 40, as cantoras do rádio embalavam os sonhos do Brasil,
mas poucos queriam ver as filhas ao microfone, quanto mais uma neta de João
Gualberto.
Mas estava
escrito. Em 1947, já morando em Curitiba, a pequena dos Gomes de Sá se
apresentou na recém-inaugurada Rádio Guairacá. Era 24 de outubro de 1947. Rosy
já não era a filha do gerente do banco, mas órfã, morava num prediozinho da
Cândido Lopes e a mãe costurava e fazia bolos para fora. Sem a tutela do pai e
sem fortuna, podia ser livre. Cantou “Desesperadamente”, de Gabriel Ruiz. O
bolero, talhado para a contralto, lhe trouxe fama a jato e a fúria da avó, que
disse aquilo “não ser coisa de moça direita”. Mas que nada. O venerado doutor
João Cândido – avô de Cunha Pereira – ficava ao lado do rádio, esperando o
momento em que cantava “a filha da Xaguana”.
Nas performances
que fazia na Boate do Braz Hotel ou na Boate Encantada do Clube Curitibano,
Rosy lançava rosas à platéia. Era seu grand finale. Em paralelo, tentava
carreira na capital da República. Depois de sobreviver ao mau humor antológico
de Ary Barroso, apresentou-se na Hora do Pato, na Rádio Nacional. No dia,
faltou luz em Curitiba – mãe e irmãos foram para a rua ouvir Rosy com a ajuda
de uma bateria de carro.
O show só terminou
quando, ainda em 1948, desgraçadamente a cantora se viu sem voz. Fez via-sacra
pelos médicos. Um deles, no Rio de Janeiro, tinha operado, do mesmo problema,
ninguém menos do que Ângela Maria, a Sapoti. “Não tive coragem de operar”,
conta. De sua breve era do rádio restou um bolachão quebrado, recebido pelo
Correio, matriz do que seria seu primeiro disco.
Restou ao diretor
da Guairacá, Aloísio Finzetto, fazer do limão a limonada: convidou sua
contratada para escrever uma coluna feminina no jornal O Dia. Chamava-se
“Ajudando o seu lar” e fez escola. A cantora virou “cronista de festas sociais”
e assinava como “F. de X” (sigla secreta de “filha de Xaguana”). Final feliz.
A adolescente que espalhou aroma de café na sala de aula, como era de se esperar, fez do jornalismo uma atividade tão interessante quando os blocos carnavalescos de dona Xaguana em Paranaguá. Depois de O Dia, trabalhou em O Estado do Paraná, de 1951 a 1953; na revista Divulgação, de 1953 a 1958; na revista Alta Sociedade, de 1958 a 1959; no Diário do Paraná, de 1970 a 1976, e na Gazeta do Povo daí em diante, já especializada em turismo. A essa altura, tinha achado os verbos de sua vida: cantar, viajar e escrever. Rosas para ela.

Ela por elas

A escritora e pesquisadora Maria Theresa Brito de Lacerda, 82 anos, faz parte do time das “primas da Rosy”. Elas se reúnem há 36 anos, a cada mês sob as expensas de uma delas. São hoje em meia dúzia – e já somam cinco baixas. Na mocidade, Theresa – então cumprindo o destino de “mocinha da cidade” – vibrou ao ver a parenta cantar no rádio e abraçar uma carreira profissional. Logo que pôde, fez sua revolução. Mandou um casamento às favas e uniu-se a outro companheiro, numa época que os descasados armavam enlaces de mentirinha no Uruguai.
“A gente vira título de boleros como ‘Perfídia’”, brinca. “Havia muita repressão. Ainda mais quando se é uma Lacerda da Lapa. Nossos pais eram muito severos. Dizia-se que se a gente lesse muito, não casava. E não casar era permanecer sob o jugo da família. Quando olho para trás, vejo o que mudamos, e que fomos seguidas.”
A escritora Liamir dos Santos Hauer, 85 anos, conheceu Rosy na infância, em Paranaguá. Participava dos blocos carnavalescos de dona Xaguana. Como se casou aos 15 anos, com o diretor do ginásio em que estudava, passou a acompanhar a amiga a distância. “Perdi todo mundo de vista. Virei um ET. Os rapazes de Paranaguá iam todos para Curitiba. Só dava moça solteirona. Era um suplício”, lembra a divertida Liamir – autora de livros como O Circo, em que conta episódios curiosos, quando não indiscretos, da alta-sociedade paranaense.
Rosy, conta Liamir, era uma adolescente inteligente, “seu boletim devia ser um rosário de notas 10.” Daí o espanto quando se tornou cantora de rádio e jornalista. “Nós rompemos barreiras. Ninguém imagina o que a gente passava. Hoje, posso me dar ao luxo de dizer o que penso”, fala a escritora, três casamentos, peso-pesado da velha-guarda revolucionária comandada por Sá Cardoso.