O artista plástico paranaense Antônio Cordeiro dos Santos costumava contar que seu pai estava na porta do cartório quando se deu conta de que tinha esquecido o nome escolhido para a criança. Lembrava que era com “A”, mas e o resto? Na dúvida, registrou o recém-nascido como “Antônio”, escolha que nunca tem erro, vire o moderno “Toni” ou o popular “Tonho”. Mas os nove irmãos mais velhos não se deram por satisfeitos – seguiram pela vida chamando o piá de “Arney”, algo estiloso, retirado de um personagem de filme visto em alguma matinê.
Pois dessa confusão doméstica surgiu “Antônio Arney”, combinação de nomes que carregou décadas a fio. Ainda que não tenha se tornado um astro de Hollywood, como talvez sonhassem seus manos, Arney – morto em 12 de outubro último, aos 97 anos – se tornou um dos mais interessantes criadores de sua geração, à revelia dos muitos esquecimentos que o perseguiram, existência afora, inclusive na hora da morte. Filho de um carpinteiro que pintava natureza-mortas quase em segredo, acabou por fazer dos dois ofícios do pai, o sitiante Joaquim, seu voucher para entrar num mundo distante do seu, como a Terra e a Lua – as artes plásticas.
Arney era autodidata e dono de uma intuição diabólica. “Uma força da natureza”, como se diz no senso comum. Em meados dos anos 1960, após a morte do trágico Miguel Bakun – com o qual guarda semelhanças, na origem humilde e na falta de formação acadêmica –, aproximou-se do grupo de vanguardistas que gravitavam em torno da Galeria Cocaco, no Centro de Curitiba. Quem o apresentou ao círculo de ilustrados foi o amigo e radialista Alceu Schwab. Tal qual Bakun, Arney não tinha o currículo, a conta bancária ou a intimidade com os salões parisienses de parte dos frequentadores do local. Tudo indica que as diferenças sociais, culturais e o diabo-a-quatro não tenham lhe ardido os calos. “Seja você mesmo”, teria lhe sussurrado ao ouvido um dos habitués da Cocaco, ninguém menos do Fernando Calderari, artista que ao lado de Fernando Velloso e João Osório Brzezinski fez tremer o relógio da Praça Osório.
Pois assim foi. AA seguiu sendo ele mesmo, assinando embaixo uma trajetória errática e comovente, qual um Volpi das araucárias. A tentação de dizer que vingou Miguel Bakun – que se suicidou em 1963 em meio a uma série de polêmicas sobre sua aceitação ou não no circuito das artes visuais locais – é enorme. O tempo vai dizer, uma vez que na última década, em particular, Arney deu de cair na rede de pesquisadores do quilate de Fernando Bini, curadores e mesmo criadores, a exemplo da genial Eliane Prolik. Não causaria espanto se sua trajetória inspirasse um daqueles roteiros de cinema que revelam as contradições da Terra Brasilis.
Exceto uma incursão pela Bienal de São Paulo de 1971, Antônio Arney ocupou o segundo ou o terceiro plano da cena cultural paranaense. Não raro, tornava-se invisível e houve quem o julgasse morto antes da hora. Em certo sentido, nunca deixou de ser o filho do carpinteiro de Piraquara, sua cidade natal. Vivia na Vila Isabel, numa dessas casas de madeira que ainda existem. Era ali seu precário ateliê – próximo à ribanceira da Rua Tabajaras – apinhado de restos de madeira cheias de cupins, matéria-prima para os objetos que se tornaram sua marca. Durante um bom tempo, pagou as contas batendo cartão como auxiliar de escritório; ou produzindo rústicos armarinhos de banheiro, banquetas e similares, que ao lado da filha Isabel vendia na Feirinha do Largo da Ordem. De modo que muita gente tem um “Antônio Arney”, comprado a preço de banana, e nem sabe.
Praticamente um “sem galeria”, Arney recebia compradores no portãozinho de casa mesmo, sem nove horas. Reza a lenda que um desses frequentadores era ninguém menos do que o arquiteto, urbanista e inventor de Curitiba Jaime Lerner. Provavelmente o ex-prefeito e ex-governador figurava entre os maiores colecionadores do artista. Além de Prolik e Bini, as galeristas Amélia Siegel Corrêa e Vilma Aguiar – da Alhures Galeria – e a pesquisadora Giselle de Moraes trabalharam nos últimos anos para romper o silêncio imoral em torno de Arney. Aplausos. Impossível, diante de tamanho apagamento, não lembrar da crítica de arte Adalice Araújo, que vociferava contra o que chamava de “autofagia” curitibana. Coisas do passado ou não, o fato é que Antônio, o Arney, partiu da mesma maneira que veio ao mundo – em meio a uma incômoda névoa de esquecimentos.