Não sei dizer ao certo – mas faz bem, digamos, uma virada de século que busco informações sobre um dos mais intrigantes faits divers ocorridos em Curitiba: o “desmanche” da confraria “Tulipas Negras”, visitada em dias de carnaval pela polícia dos costumes e humilhada publicamente, para que não ousassem mais se reunir. Nem se vestir de mulher. Nem ser o que quisessem.
Para quem chegou depois que a conversa começou, o fato se deu no início da década de 1950, no Centro da capital paranaense. Para ser mais preciso, no então elegante Edifício Kwasinski, na Praça Osório – então um dos metros quadrados mais disputados dessas plagas. “Reza a lenda” que um grupo de homens da alta sociedade formava uma espécie de clube secreto e se reunia no Kwasinski vez em quando, para prosear e ver a banda passar. O nome “Tulipas Negras”, claro, é autoexplicativo.
Enquanto lá fora vigorava uma cidade tacanha, familista, integralista e de poucos amigos, ali, entre as quatro paredes do grande apartamento, os sócios estavam livres para falar o que bem entendiam e exercer a sua sexualidade, sem medo de amanhecerem numa cela fria do Presídio do Ahú, castigo dado aos pobres que por desgraça fossem identificados como gays. Anônimos e atrás das chaves da casa, os rapazes do Kwasinski não faziam mal a ninguém – mas as autoridades não se convenceram disso, arrombando a festa dos guris e deixando o episódio para a coleção das histórias mal resolvidas de CWB.
Ainda que agremiações semelhantes fossem raras naquela altura da Idade da Terra, por si só o nascimento, vida e morte do grupo é um fato natural. Os minorizados, em qualquer tempo e lugar e, como se vê neste caso, qualquer classe social, sempre deram um jeito de vestir asas para voar. O que faz do episódio algo tão singular foi sua forma e conteúdo. Houve invasão de um espaço privado, repressão do que poderia ser enquadrado como um cordão carnavalesco; e orquestração com a imprensa, que se comportou como uma trupe de meninos maus que promovem bullying no pátio da escola.
A atitude de repulsa era provocada, em especial, por informações médicas equivocadas, alimentadas desde o início dos anos 1910. Impressionistas, recheadas de moralismo e dadas a diagnosticar a homossexualidade como desvio psíquico e de caráter, tais teorias davam credibilidade a atos violentos, partido das autoridades, familiares e o escambau.
De modo que o que aconteceu no Kwasinski ocorreu, anos depois, em outros condomínios menos tarimbados da cidade. O expediente era quase sempre o mesmo – alguém chamava a polícia e se debruçava na janela para assistir o pega pra capar. Os jornais, claro, não perdoavam. Davam publicidade máxima ao flagrante, enobreciam as investidas dos fardados e desciam a lenha nos comportamentos, reais e imaginários, das vítimas. O teor das reportagens era sob medida para revirar os bofes da opinião pública.
Aterrorizados, supõe-se, muitos “tulipas” voltaram miudinhos de sua jornada de herói e se dedicaram, sem fazer alarde, a sua vidinha de sempre, até que os esquecessem. Tanto é que, 70 anos depois, poucos sobreviventes aceitam tocar no assunto. É como se no entorno da sociedade secreta do Kwasinski outra tivesse se formado, com gente que, nem pagando, quer ver seu nome ligado ao episódio.
Os que sabem argumentam que falar do assunto é repeti-lo, sem deixar defesa para os envolvidos. Mas não se trata disso. A tragédia dos “Tulipas” aguarda na fila do justiçamento histórico. O episódio precisa se livrar do lugar folclórico que ocupa nas conversas tolas sobre a Curitiba do passado. E da citação feita aos confrades pelo nosso vampiro de estimação, Dalton Trevisan, numa de suas obras. O que ocorreu naquele carnaval tem a ver com a tolerância e o respeito aos corpos. Os “desajustados” do apartamento da Osório, oras, são dignos da nossa admiração. Vamos com pressa, faz frio, e já passa da hora.