José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

As Florentinas do Paraná do Norte

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
26/04/2020 19:00
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A quarentena tem sido pródiga em leituras para o
economista paranaense Valdir Francisco, 68 anos. Da lista, fazem parte Escravidão – volume 1, do conterrâneo
Laurentino Gomes; As barbas do imperador
– já um clássico da historiografia, assinado por Lília Schwarcz – e uma obra em
especial, que lhe faz estatelar os olhos, pausar a voz: Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, livro
com o qual tinha uma dívida. Noves fora, Gabo – apelido do escritor – e Valdir tiveram
o tal do encontro marcado.
Há 12 anos, Valdir Francisco – que trilha carreira paralela
nas artes plásticas – se enveredou pela genealogia. Começou sem pretensões de
estagiar no Arquivo Nacional. Queria saber mais sobre os pais e avós e assim
por diante. Os seus, afinal, figuram entre os brasileiros que na primeira
metade do século 20 se deslocaram de tudo que é canto para colonizar o Norte
Pioneiro e o Norte Novo do Paraná, precisamente a cidade de Paranavaí. Até aí,
tudo bem. Muitos genealogistas de ocasião tiveram curiosidade semelhante e se
atiraram de braçada na papelada. Visitaram paróquias e consultaram o site dos
mórmons – o Family Search –, um achado dos deuses para quem procura o quase
impossível. Depois, plotaram a árvore genealógica, colocando-a à mostra numa festa
de almoço farto, sob medida para atrair primos desconhecidos e tias que
julgavam falecidas.
Valdir Francisco cumpriu todos esses rituais – o mais recente em novembro passado, quando reuniu em Paranavaí 80 pessoas de seu ramo materno, os Alves de Oliveira. Os Francisco do lado paterno – ou Defrancesco, na versão italiana – foram alvo de um encontro anterior, não menos concorrido. A diferença desses revivals e de tantos outros dos quais se tem notícia é que durante a confraternização o anfitrião brindou a parentada com livros parrudos, deixando a audiência sem fala. Foram escritos de próprio punho, com informações arrancadas a fórceps dos cartórios, arquivos trancafiados de cidades do interior e cúrias, donatárias de milhares de batistérios aos quais se tem acesso, não raro, só por milagre. Seu Cem anos de solidão nasce assim – um dia de cada vez.
Há 12 anos, Valdir Francisco se enveredou pela genealogia. Começou sem pretensões de estagiar no Arquivo Nacional, mas agora escreve e publica livros parrudos
Quem conhece o Valdir sabe que não verga fácil. Ele
tem credenciais para arrancar informações da CIA, caso decida. Além da
persistência e da disciplina, é dono de uma simpatia oceânica, um tipo
irresistível. Difícil imaginar um vigário lhe batendo a porta à cara ou uma
arquivista o mandando plantar batatas. Com o tempo, a garimpagem que hoje
ultrapassa o século 16 passou a contar com a luxuosa parceria do filho, o
jornalista Gustavo Ribeiro de Francisco, picado pelo mosquito da historiografia
ainda piá. Precoce, passou a investigar os campos de aviação no Paraná,
implantados aos montes no ciclo do café, assunto no qual é imbatível. O resto
da família, em alguma medida, entrou na dança – a mulher Maria, a filha Ludmila
e a nora Carolina do Prado, que em meio a tanta poeira se descobriu descendente
de judeus sefarditas portugueses.
A primeira obra da empresa doméstica é de 2018 e se
chama Seda, plumas e bergamotas, cujo
conteúdo mereceu comentário nesta coluna.
A mais recente, À sombra das
paineiras
, teve supervisão de Gustavo, mas é um voo solo do incansável
Valdir. Asas para tanto não lhe faltaram. Para muito além dos acervos que
costuma bisbilhotar, teve a seu favor a convivência, na meninice, com a avó
Florentina – alma do livro. E encontrou como parceira a mãe, Helena, passada
dos 90 anos, cujo disco rígido não apresenta defeito. E também da tia
Francisca, 95 primaveras, uma espécie de Úrsula Iguarán-Buendía saída de Cem anos de solidão. Esse time faz de À sombra... uma daquelas narrativas
saborosas, que nos inspira a fazer o mesmo.
O autor desvia de umas tantas cascas de banana, comuns ao gênero “saga familiar”. Foge da tentação de adjetivar em demasia os antepassados, idealizando-os. Ao não fazer julgamentos fáceis, evita transformar seu trabalho em hagiografia para boi dormir, como se no passado todo mundo comungasse diariamente às sete da manhã. Também não sapateia sobre cadáveres. Poupa de piadinhas o português de Verrin, José Antônio da Rocha, seu bisavô, hábil em se casar e em povoar o mundo de filhos. Na última conta chegou a 17 rebentos. E não elogia a fúria fálica dos dois tios padres que abandonaram a batina, encantados pelos rabos de saia que lhes roubaram o juízo. Não listou filhos fora do casamento, nem picuinhas escorpianas, que por certo existem, mas das quais os envolvidos não podem mais se defender. Antes, se ocupa de explorar episódios de beleza ímpar, que à revelia do teor emocional se perderam no bolor.
É o caso da morte da menina Yolanda, em meados da
década de 1930, ainda em Minas Gerais. A mãe da guria, Florentina, futura
matriarca dos Alves de Oliveira, guardou as roupas da menina num baú, que nunca
mais foi aberto. Há poucos meses, uma das irmãs de Valdir, Marlene, criou
coragem e tirou o lacre da relíquia, fechada por pelo menos 70 anos. Encontrou
vestidos bem cerzidos e panos intactos da menina morta. Com o enxoval, emerge uma
dor da maternidade impedida de ser expressa, quem sabe, em meio à urgência de migrar,
de derrubar mata fechada para plantar café, de ter outras crianças a amamentar.
Passagens como essa fazem do relato de Francisco uma narrativa sobre mulheres
fortes que circularam nos corredores dos cafezais paranaenses.
Histórias particulares que interessam só a meia
dúzia? Não, caso se leve em conta que o microcosmo dos Alves de Oliveira é o
lugar comum de milhares de famílias naquele período. Documentos como esse,
feitos com simplicidade, mas sem amadorismo, aproximam o leitor de figuras cativantes
– como o agregado Bastião, por exemplo. Os deslocamentos territoriais eram
radicais, as finanças passavam por debaixo dos colchões e nossas avós não eram
um retrato na parede, mas uma jovem cheia de filhos que pendurava uma enxada ao
lado do fogão a lenha.
Valdir Francisco não escreve sobre inquilinos da casa grande, industriais ou gente de pedigree. Tem lá um parente importante e nada mais – em contraste com a genealogia da companheira, Maria de Francisco, cuja árvore cruza num século distante com uma dinastia britânica. Mas sem direito a herança, como brinca o casal. No conjunto, os personagens do economista passaram anônimos por São José da Barra, município mineiro alagado por uma barragem; ou por Guapé, parcialmente desaparecida. Fácil, fácil, a gente vê similaridades entre essa trama e o lindo filme Narradores de Javé, de Eliane Caffé, sobre um município que desaparece debaixo das águas, sem heróis ou patrimônio histórico que os salvasse.
Valdir Francisco não escreve sobre inquilinos da casa grande, industriais ou gente de pedigree. Seus personagens passaram anônimos pelas cidades
Mesmo sem serem propriamente pobres, os Alves de Oliveira
subiram em rabeira de caminhão para circular no rico e empoeirado Norte Novo. E
se dispersaram, em parte, depois de julho de 1975, quando a Geada Negra levou o
nosso ouro verde para o quinto dos infernos. Alguns desses novos nômades voltaram
ao Nortão atraídos pelas festas de família. Foi ali que se depararam com os
livros de Valdir Francisco. As pequenas histórias que encontram ali divertem,
mas também têm o poder de abrir cômodos esquecidos da casa. Eis o segredo.
Uma sobrinha do autor, estudiosa de moda, se debruça
sobre os vestidos de noiva das tias, muitas delas já mortas. Eram cópias dos usados
pelas estrelas de cinema. Causa espanto como essas informações chegavam à
distante Paranavaí, em se tratando de um tempo em que a região malemal tinha estradas.
Mais, o pesquisador se surpreendeu com a quantidade de fotos recortadas pelas
mulheres, sem dó, usando da tesoura para apartar os maridos. Pelo menos no
álbum de retratos, cada um para seu lado. Outras usaram de caneta para apagar o
próprio rosto. “Suspeito que não gostavam de se ver”, desconversa.
Os motivos ele não explora – conta que a primeira
parenta a se separar o fez em 1969, quando os filhos estavam criados, mas que,
de resto, as rupturas se deram no silêncio e na solidão da terra vermelha. Essas
e outras passagens ficam à mercê da imaginação – que corre solta. As histórias
que Valdir Francisco se especializa em contar são da sua gente, mas também da
nossa, sempre tão parecida, na tragédia, na comédia e na boca fechada.

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