José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Brasil: duas polegadas a menos
Mabu – na Praça Santos Andrade, em Curitiba. Avisei na recepção que estava ali
para conversar com a dona Martha Rocha, no que fui respondido com um olhar de
detetive. O moço do balcão quis saber “o que eu queria com ela”. Expliquei que
faria uma entrevista para o jornal Gazeta
do Povo, que tinha horário marcado e, antes que eu continuasse, disparou um
sonoro “quem é afinal essa Martha Rocha?”. Pois então.
confessar que não sabe quem é quem. Minha geração disfarçava a ignorância –
meio que na malandragem. E mesmo quando a gente explica aos incautos – como
fiz, tempos atrás, gastando 40 minutos para apresentar, exultante, a solar
Leila Diniz a um grupo de estudantes –, a turma dos verdes anos diz na cara dura
se foi ou não com as fuças daquela figura do passado, mesmo que a gente a julgue
tão importante quanto os césares e faraós.
gostou muito dela, achou que ter participado de uma dezena de filmes – entre
eles como a protagonista de Todas as Mulheres
do Mundo (1967) – não era motivo para tanto alarido. Tampouco adiantou
argumentar que era a madrinha da Banda de Ipanema e citada na música da Rita
Lee – “Toda mulher é meio Leila Diniz”. Emendei que tinha morrido jovem, num
acidente de avião em 1972, o que a impediu de forrar o currículo de títulos e
prêmios. Fosse outra sua sorte, seria como Marieta Severo, Dina Sfat ou Betty
Faria, suas coleguinhas de revolução nos costumes.
Rocha... perdi também. Não o convenci. E olhem que fui didático como uma
normalista. Comecei indagando se ele tinha ouvido falar num doce chamado
“Martha Rocha”. Sim, tinha sido apresentado à iguaria, e daí... “Foi feita em
homenagem à senhora que estou esperando” – com o acréscimo politicamente
incorreto que a torta, criada em 1954, pela dona da Confeitaria das Famílias, Dair
da Costa Ferzado, era “linda e gostosa como a mulher que lhe emprestara o nome”.
Ia contar a história das lendárias duas polegadas a mais nos quadris, tema de
uma marchinha de carnaval de 1955, mas não surtiria efeito. Pensei em dizer que
a tal Martha era freguesa da imprensa e que estampou umas tantas vezes a capa da
revista Cruzeiro, um fenômeno
editorial que chegou a 700 mil exemplares semanais, mas não ia dar pé.
desceu ao saguão – maquiada, penteada e um desacato, então, no alto de suas 70
primaveras. Penso que continuou achando aquilo muito estranho, mas àquela
altura eu estava era mesmo interessado em devorar Martha Rocha, o que fiz com
apetite. A miss Brasil que ficou mais tempo no emprego – páreo apenas para
outra loura, a catarinense Vera Fisher – se mostrou um par perfeito para uma
conversa debaixo do caramanchão. As plásticas não tinham roubado sua
naturalidade. Os olhos azuis-turquesa ainda iluminavam uma sala de mil metros,
se preciso fosse. E havia aquele sorriso que deve ter botado no chinelo a
norte-americana Mirian Stevenson – vencedora do Miss Universo 1954 –, mas só os
jurados não viram. Chuncho? Xunxo.
de Arte. Tratou de pintura, é claro, seu hobby tardio, mas falou muito da mãe,
a curitibana Hansa Hacker, vinda da comunidade alemã. Natural de Salvador, Rocha
se sentia em casa no Paraná, o que a fazia um patrimônio a ser repartido entre
os dois estados. Não falamos da vida privada – ela se limitou a dizer que vivia
em Volta Redonda, no interior do Rio, que contava com o afeto dos vizinhos.
Sabe-se pela imprensa que passou os últimos tempos em Niterói, que bateu ponto
numa casa de repouso e que tinha dificuldades com as contas no final do mês. No
mais, viveu dos 18 (ou 21, como hoje se sabe), quando se tornou miss, aos 87
anos o papel que Joaquim da Távora chamou de “eterno feminino” – posto dividido
no imaginário nacional com Tônia Carrero e Eva Wilma, suas contemporâneas.
seguida pelo passamento do compositor de trilhas de cinema, Ennio Morricone,
mas não deixou de render algumas conversas bobas, sobre o tempo em que o Brasil
vibrava com concursos de misses, pondo abaixo o Maracanãzinho ou o Hotel Quitandinha,
de Petrópolis, onde Martha encontrou a glória. Passado. Com as safras
espetaculares de supermodelos que surgem por aqui, na terra de Gisele Bündchen
os certames com capa, cetro e coroa viraram velharia e só parecem gerar algum
entusiasmo em países como a Venezuela.
concursos. Mas é fato que os “missólogos” existem. Já encontrei um – num evento
acadêmico – e certifico que a apresentação de sua pesquisa não provocou entusiasmo.
Talvez pela tradição de pensar a sociedade a partir dos seus grandes fatos – o
que reduz a pó as miudezas do cotidiano; talvez porque o Brasil e o mundo
tenham problemas demais para admitir que alguém perca tempo estudando os feitos
da amazonense Terezinha Morango (coroada em 1957) ou da mineira Stäel Abelha
(coroada em 1961), citando se tinham 90 de busto e 90 de quadril – ou se
ficavam bem dentro de um maiô Catalina.
leitura preferencial das candidatas – O
Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry –, o apreço que tinham pela paz
universal, pela virgindade e a rapidez com que se casavam, assim que entregavam
o cetro e a coroa à sucessora. São meias verdades. A paranaense Ângela
Vasconcelos, coroada em 1964, era culta como uma musa existencialista e tinha
tutano para discutir Heidegger com um catedrático. Tampouco parece que a gaúcha
Ieda Maria Vargas (1963) e a baiana Marta Vasconcelos (1968) – ambas eleitas
Miss Universo – fossem tolinhas de plantão à espera de um bom matrimônio, o que
as entrevistas que davam podem confirmar. Aliás, elas vendiam revistas pacas.
duradouras, num país que não existe mais. Mas nenhuma delas se compara à
carioca Adalgisa Colombo, merecedora de um capítulo exclusivo no delicioso
livro Feliz 1958 – o ano que não devia
terminar, do jornalista Joaquim Ferreira dos Santos. O ano de 1958, para
quem dormiu na aula de História, foi aquele em que o guapo capitão Bellini
levantou a taça Jules Rimet; em que as DKW-Vemag ganharam as ruas em pleno 50
anos em 5 do governo JK; em que a cantora Maysa se consagrou como a Piaf
brasileira. Foi o ano da inocência perdida – com o assassinato da estudante
Aída Cury por dois cafajestes bem-nascidos. O ano em que João Gilberto gravou Chega de Saudade – dando partida à era
bossa nova. O ano em que Adalgisa Colombo mostrou que miss não precisava ser
mocinha, mas mulher feita, adulta, lição que serviu para todas as outras.
poucos a mostrar como os concursos podiam, ao simples trocar das faixas, mexer
com a postura física e moral das gurias. Adalgisa falava francês e ganhava uns
dobrões como modelo. Emprestava seu corpo mignon para as freguesas
endinheiradas da Casa Canadá imaginarem como ficariam num Dior, caso tivessem o
porte de Adalgisa. Ela tinha tudo, menos belezinha de miss. Mas subiu à
passarela do mesmo jeito – talvez em busca de uma arrancada internacional na
carreira.
acompanhava os maiôs, de modo a alongar as pernas. Prendeu o cabelo em coque,
para valorizar o pescoço e o colo. Mandou às favas aquele sorrisinho beatífico de
quem acabou de ler “és eternamente responsável por aquilo que cativas”. Depois,
pisou no palco com pinta de quem tinha opinião. O que não era mentira. Bom, no
dia seguinte toda a brasileira era um pouco Adalgisa Colombo.
“Pobre Menina Miss”, assinada por um mestre do estilo magazine, José Carlos
Marão, o ridículo machista dos concursos ficou pelado de vez. O jornalista
narra os bastidores de um concurso. A frase final da reportagem é matadora:
“... com as três vencedoras fica a certeza de que tudo vai recomeçar, em outros
lugares do mundo, onde locutores dirão em inglês – e em polegadas – quanto mede
cada parte dos seus corpos.”