Redação

Censura – um amor, estranho amor

Redação
15/09/2019 19:00
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No filme As sombras de Goya (2006), de Milos Forman, há uma cena de morrer de rir. Em meio às invasões francesas no Reino da Espanha, no início do século 19, José, irmão de Napoleão Bonaparte, avalia que obras de arte vai pilhar – ou “levar para casa”, em bom português. Passar o rodo em telas, esculturas e objetos antigos – o que inclui sarcófagos e suas respectivas múmias – era, como se sabe, uma prática comum e até hoje motivo de contendas entre nações.
José – do alto de sua ignorância – faz pose e despreza o tríptico O Jardim das Delícias Terrenas (1504), do flamengo Hieronymus Bosch. Ao flagrar a utopia do amor livre – e bem animado – retratado por Bosch, avisa que o mano Napoleão não vai gostar nada-nada daquilo. Também não se anima muito com a tela monumental que mostra a família de Carlos IV (1800), assinada pelo gênio da raça Francisco Goya. Sem ter o que dizer, garganteia que a rainha Maria Luísa “é muito feia”. Como bem sabemos, esse tipo de comentário é ficção. Por fim, encanta-se diante de As meninas (1656), de Velázquez, e afirma, com o pomo-de-adão a lhe saltar do pescoço, que “aquilo sim é que obra de arte”.
Desconheço se José mandou embrulhar As meninas – a tela está hoje no Museu do Prado, em Madri –, mas o fato é que seu feeling de censor foi enganado. Aos iniciantes, a pintura parece a mera reprodução de uma cena banal do cotidiano da família real, mas é uma fonte inesgotável de enigmas, sujeita a cascatas de versões. Trata-se de uma obra-prima do ponto de vista formal, mas sobretudo um estímulo ao livre pensamento, saída da mente de um homem que vivia debaixo dos espartilhos da monarquia e que, em revide, “pinta” nas entrelinhas. Se tirou sarro das cabeças coroadas? Suspeito que sim. As meninas serve para toda sorte de especulação, menos para combinar com os sofás dos Bonaparte. Moral da história: é patético o horror burguês ao sexo explícito mostrado por Bosch; uma burrice não perceber a ironia de Goya; e uma comédia involuntária se encantar com Velázquez, achando que o pintor mostra o que o observador julga ser legítimo mostrar, ignorando a estreiteza da própria mente. Está num jogo, e mal sabe. A censura tiraniza aqui e ali, mas é zombada pelas costas acolá.
Os episódios de atentados à liberdade de expressão formam um capítulo da vida nacional
A tal cena faz lembrar – não sem certa angústia – a trupe do MBL arrotando indignação na mostra “Queermuseu”, em Porto Alegre, em 2017, com curadoria de Gaudêncio Fidelis. É assunto conhecido. Mas permitam dizer que pode ter sido esse episódio o marco da enroscada em que nos metemos. A exposição foi fechada, reaberta no Rio de Janeiro, ressignificada, debatida até o caroço, mas nada se mostrou capaz, dali em diante, de apagar a sensação de que o chamado “culto do amador” – na expressão do analista de mídia Andrew Keen – ultrapassou o estágio dos comentários obscenos nas redes sociais. A censura tinha voltado, com ares de Santo Ofício, um happening sinistro protagonizado por Torquemadas saídos das tumbas. Chorei, choramos.
É fato que nunca nos livramos dessa praga, de todo. Os episódios de atentados à liberdade de expressão formam um capítulo da vida nacional. A pesquisa A cabeça do brasileiro, assinada pelo sociólogo Alberto Carlos Almeida e publicada em 2007, mostrou em minúcias a paixão nacional pela censura, com se em nós fosse uma doença de nascença. À época da publicação, entre os menos escolarizados, 56% rechaçavam críticas ao governo nos noticiários e nos programas de humor. Por tabela, a novela e o livro tinham de levar chineladas de agentes instituídos para tanto. Outras pesquisas confirmavam a crença na proibição como medida de todas as coisas.
A censura tiraniza aqui e ali, mas é zombada pelas costas acolá
Semana passada, em meio
ao fuzuê provocado pela ameaça de apreensão de uma HQ com suposto potencial
para inspirar um exército de gays, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, fiz o
exercício de lembrar uma saraivada de acontecimentos semelhantes, presenciados
em 30 anos de jornalismo. Os fatos chegavam à redação, com a fúria de meteoros.
Recordo pelo menos quatro ocorridos, só em Curitiba, envolvendo artes visuais.
Mas a maioria dos fatos envolve livros didáticos e paradidáticos, expurgados
por pais e professores em fúria. Não vou dizer o nome, mas tem um famoso
escritor das araucárias que jurou nunca mais ceder textos para uma escola,
tamanha dor de cabeça lhe causou o obscurantismo pedagógico. Queriam lhe armar
uma fogueira. Um conto assinado por ele virou bandeira de um diretor
desajustado. Só restava ao autor fugir, acuado por um gesto de sonegação do
direito à cultura, tema de gente bamba como Pierre Bourdieu e Roger Chartier,
para citar dois nomes a quem se deve respeito.
A difusão cultural funciona com divisão de tarefas, não com acúmulos. Convenhamos, é uma bobagem que as instituições de ensino sejam as únicas responsáveis pela formação de público, pelo simples fato de que a escola é incapaz de fazer o serviço completo. A educação formal no país tende a ser cronológica, hierárquica, autoritária, insensível aos interesses dos alunos. Mostra-se alheia à ideia de cultura como “vida do espírito”, preferindo-a colocá-la debaixo das torturantes expressões “arte é para aprender a ser crítico”, “para escrever bem”, “para ter o que dizer”. O medo da leitura por curiosidade e prazer se tornou patológico. Acrescente-se que parte do sistema de ensino ainda se vê como uma escola jesuítica do século 16, ocupada da formação moral e, pelo andar da carruagem, da salvação da alma. É fato que a educação deu e dá passos largos. Seus avanços são notáveis. As injustiças que sofre são flagrantes. Mas custa a deixar de ser excludente – excludente de pessoas, de discursos e de conteúdos. Qualquer José Bonaparte se sente no direito de chutar a porta da biblioteca, a porta do jornal, a porta do museu. Assim tem sido – alguns decibéis acima do normal.
Somos uma versão amplificada das qualidades, mas também das fragilidades das famílias, escolas e igrejas onde estagiamos
Seria interessante se
os indignados disfuncionais silenciassem um pouco e lessem, por exemplo, o
filósofo Gilles Lipovetsky. Como um professor de aldeia, ele faz contas e
mostra as evidências de que a família e as igrejas exercem muito mais
influência do que as demais instituições. Pelo simples fato de que o tempo de
exposição a pais e líderes religiosos é maior. E não bastasse ser maior, passa
pelo que Zygmunt Bauman entendeu como a experiência do coletivo e do afetivo. O
que é falado e discutido em roda – na mesa do almoço de domingo, por exemplo –
receberá mais engajamento do que uma notícia de jornal ou um filme. O parangolé
é quando, no entender de quem cria, os filhos se mostram frutas que caíram
“longe da árvore”. A esse respeito, recomendo o magnífico livro homônimo do
jornalista norte-americano Andrew Solomon. Só resta procurar culpados fora de
casa, como se cada lar fosse um território de anjos. Somos uma versão amplificada
das qualidades, mas também das fragilidades das famílias, escolas e igrejas
onde estagiamos. Simples assim.
Sim, toda forma de angústia é compreensível. Seria desumano desconsiderar os efeitos da máquina de moer carne a que todos estamos expostos. O que não dá para engolir é o apoio ao apagamento – venha de onde venha. Os últimos dias foram de flagrantes lembranças de uma das obras que melhor enxergou o século 20 – Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. No romance, bombeiros invadem casas para incinerar livros. Em resposta, sociedades secretas decoram romances inteiros, de modo a que sobrevivam à fúria obscurantista. Um dos incineradores da floresta do conhecimento volta atrás – ele se chama Montag, e é um herói angustiado. Há duas versões em cinema. A de 1966, assinada por François Truffaut, é mais intimista e tem Julie Christie no papel de uma das “decoradoras” de livros. A outra é de 2018, mais frenética, com direção de Ramin Bahrani.
Lembrar Fahrenheit 451 agora é muito óbvio, sei disso. Assim como puxar pela memória a prática nazista de incinerar livros. E a prática antinazista de saquear livros de quem o poder julgava ser nazista – o que ocorreu em Curitiba a partir de 1942. Censurar é como coçar... As pesquisas do venezuelano Fernando Báez, maior autoridade mundial em atentados a bibliotecas e afins, merece ser lida. Decorada, quem sabe. Porque informa, mas também chama atenção para o horror dessas práticas. Ilustro: enquanto filmava sua versão de Fahrenheit 451, Bahrani pediu aos atores que queimassem livros de verdade, como parte do laboratório do filme. Levou uma rasteira. Houve comoção nas locações, pois com esse gesto se tornaram cenário de um crime real – esse sim de fato imoral, na vida e na ficção. Parece mentira que alguém queira acender esse fósforo. Quero crer.