José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Como o futebol explica a gente

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
08/07/2018 05:00
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Felipe de Lima Mayerle

Pois olhe, um jeito confortável de contar a própria vida é dividi-la em gavetas. Numa se pode colocar a história afetiva, noutra a familiar. Mais abaixo, um lugar para a trajetória no trabalho; ao lado, as amizades. Sugiro um espaço para as histórias de leitor, de cinéfilo, de público de teatro e – ao sabor das ondas – gaste-se um pouco de tempo com as memórias gastronômicas. Nesse exercício de taxonomia, impossível não deixar um cantinho para as narrativas de futebol. A recomendação vale para os perebas, pois em Terras de Santa Cruz, da sina boleira ninguém se safa.
Começo pela minha história, que é curta e grossa, um conto da carochinha. Não quiseram os deuses que eu nascesse para o futebol – ou pelo menos assim acreditei. Faço parte dos que têm dificuldade em saber o que é um zagueiro, dos que ficam perdidos quando o time muda de lado. Durante muito tempo, confesso, tive desprezo pela bola, de modo a desperdiçar todas as oportunidades de me tornar um futebolista mínimo. Não foram poucas.
Dos 13 aos 25 anos num seminário católico, fui – sem eufemismos – “obrigado” a jogar bola pelo menos uma tarde por semana, às quintas-feiras, das 14 às 16h30. Uma tortura. E pensar que muitos dos meus colegas se acharam chamados por Deus no dia em que viram os quatro campos gramados do colégio. Aquele tapete verde só podia ser o dedo do Criador. Não era o meu caso, que preferia carpir matinho. Mas o treino para o voto de obediência passava pela participação ampla e irrestrita na “tarde do esporte”. Sobre ela, os padres repetiam uma ladainha sob medida para nos atazanar a alma: “É num campo de futebol que as pessoas mostram o que são”. Não apliquem a frase ao Neymar – não agora.
Nas quatro linhas, o mais virtuoso dos candidatos ao sacerdócio podia se manifestar um capitão do mato, chutar canelas sem piedade, cavar faltas como um bandido e – o mais grave – xingar nossas santas mãezinhas, com um FDP de causar eco na catedral. Acontecia. Cá entre nós, essa pedagogia era uma meia verdade, pois convivia com uma contradição. O seminário tinha um time oficial, que competia nos campeonatos de várzea da cidade de Rio Claro, interior de São Paulo – onde vivi os melhores anos de minha vida, exceto às quintas-feiras de tarde, se me entendem. Nessa seleção, só entravam os craques, de modo que dava para conhecer o caráter de quem fazia as escalações pela lista pregada no mural, com os seis times da casa. Era uma escolha excludente, segregadora, um resquício dos mercados e escravos, dos campos de concentração. Fosse aplicado o espírito cristão, teriam me colocado pelo menos uma vez no Time A. Mas nem um pio a respeito: a escalação carregava o peso das Tábuas da Lei – não se discutia.
Havia efeitos colaterais. Na rádio-corredor, dizia-se que a equipe dos “destituídos de espírito ludopédico” (Grupo F) era o “time das bonecas”, rótulo que costuma recair sobre homens incapazes a uma embaixadinha ou de acertar a gol. Cheguei a me revoltar contra o título, embora não o estranhasse. Antes, muito antes do seminário, fui sempre o último da escola e da rua a ser escolhido para jogar. O mesmo acontecia com o Marcos Valério, segundo um perfil que li dele, o que me faz temer haver uma associação entre ser perna-de-pau e andar metido em falcatruas. Caráter? Não sei. Mas sei que não guardo ressentimentos. Tive traumas bem mais sofisticados do que ser o pior jogador da paróquia.
No mais, devo admitir que assistir ao timaço do seminário – na peleja com as agremiações da cidade – foram os melhores jogos que vi. Quando a time da casa estava ganhando, sempre tinha um adversário malaco, leigo e sem coração, que passava do lado e dizia ao pé do ouvido de um seminarista: “Hum, homem de saia”. Os diabos afloravam. Vi espirrar sangue mais de uma vez, em sensacionais cotoveladas no nariz dos pilantras. Sabe a cabeçada do Zidane? Fichinha. Nenhum engraçadinho saía sem troco. Conheciam o peso de mãos feitas para abençoar. Mas não houve óbitos, posso lhes garantir, de modo que nenhuma fé deve ser abalada com essa informação quase Vaticana. No mais, nunca façam pouco de um homem de saia.
Pelas minhas contas, em quatro anos de seminário menor, cumpri 160 partidas, que me ocuparam infindas 364 horas – de modo que merecia um atestado de caráter ilibado e paciência de Jó. Todas as quintas-feiras de chuva naquelas plagas, tenho certeza, foram fruto de minhas rezas. Quando caía um toró “bem na hora do jogo”, mandavam-nos escolher feijão. Isso sim é que é esporte.
Para desespero, na medida em que avançava nos estudos – e acreditava que as tardes de futebol seriam trocadas por maratonas de Teologia e Filosofia –, mais aumentavam as partidas. Além de quinta, sexta à noite. Culpa da crise de vocações. Com menos pessoas nas comunidades, todos tinham de jogar para fechar um time. A revolta veio num seminário em Ribeirão Preto, onde morei a partir de 1983. Levei um carrinho tão violento de um colega que voei metros à frente, como se tivesse sido atirado de um avião. Caí no gramado feito um coelho. Deve ter sido divertido para alguém. Ouvi as risadas e um infame “ói o curitibano aí gente”. Levantei e saí para nunca mais voltar. Naquela tarde, mostrei quem eu era.
Enfrentei a ameaça de expulsão do claustro, a cara feia dos confrades, mas ganhei tardes de silêncio e nirvana, nas quais, se bem lembro, li catataus de Nietzsche, Thomas Mann, Sartre & Simone…. Até que o futebol bateu na porta de novo, mesmo depois de ter dado a conta ao esporte bretão. Foi no exercício do jornalismo, em meados da década de 1990, ao ler um relatório da Câmara Brasileira do Livro (CBL), sobre desempenho do mercado editorial. O texto informava que as obras menos vendidas no país eram as de livros de arte – na casa do 1% do total. Isso me interessava. Seguidas da mesma porcentagem de livros sobre futebol. Isso passou a me interessar.
Podia jurar que os milhares de torcedores se esgoelavam no estádio e, em casa, liam textos sólidos sobre seus times do coração. Tolinho. Como escreveu Cristóvão Tezza, em crônica inspirada, “O futebol e o sentimento trágico”, publicada dia desses no jornal Folha de S. Paulo, o futebol é uma “saudável reserva irracional, espaço misterioso e eficiente de catarse…”. Entendi com aquele 1% que estudar a paixão equivaleria matá-la, como que a dissecar um cadáver, daí a repulsa que intelectualizar as peladas – pequenas e grandes – provoca.
Para quem não nutria qualquer paixão futebolística, no entanto, tanto fazia. Fui atrás de saber dos livros sobre esporte que encalhavam no mercado e achei do que me ocupar. Equivaleu a fazer as pazes com um universo que só me sacaneou. Não empresto Futebol e outras histórias, do João Saldanha, nem para meu irmão. O negro no futebol brasileiro, do Mário Filho, está na categoria obras raras. E – espero que nenhuma divindade me castigue – orientei trabalhos de conclusão de curso (TCCs) sobre futebol.
Os alunos e suas conversas eufóricas sobre torcidas, times de suburbana e coisa e tal, estão lá, na gavetinha das memórias do futebol. É bem sortida, aliás. Tem entrevista que fiz com o Carazzai – ídolo do Coxa na década de 1960 –, e com o Amauri dos Santos – um dos primeiros negros a jogar no Atlético Paranaense. Os papos com o colecionador de recortes de jornal sobre times locais, Levi Mulford – com folga um dos caras mais incríveis desta cidade. Livros do Roberto Da Matta, do João Miguel Wisnik; e o afetivo Como o futebol explica o mundo, do jornalista norte-americano Franklin Foer. Recomendo.
Na gaveta também estão anotações para uma crônica que não foi escrita. O único jogo oficial a que assisti foi aos 10-11 anos: Atlético e Matsubara, aqui pertinho de casa, na época em em que havia um banhado na frente da Arena. Fui em companhia de um colega de infância – Renato Sozzi. Eu me tornei um zero à esquerda em matéria de esporte. Ele, um aguerrido organizador de torcidas. Nunca mais nos vimos, mas os Sozzi são uma lembrança bonita. Pareciam saídos de um filme de Frank Capra. O pai, seu Sozzi, era sorridente, educado, usava cabelos à gomalina e tinha uma bicicleta com motor. Muito mais legal que as naves espaciais. A partida que vi com eles foi um capítulo da infância. Não lembro se o Atlético ganhou, mas sei que se tornou o meu time naquela hora. Vai ver, os padres tinha razão – o futebol diz muito sobre o que somos.