José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Conexão Brasil-Rússia: Dalton, rodízios e bobagem

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
01/07/2018 21:00
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Arte: Felipe Lima

“Dá para comer até morrer?”, perguntou o russo Sergei Sissin a um grupo de jornalistas em visita à antiga URSS. Foi em 1997 – há 21 anos. O guia de turismo se referia aos rodízios de carne e de pizza, dos quais ouvira falar a partir de 1991, pós-queda do regime comunista, assim que levas de brasileiros deram de desembarcar na Rússia, a passeio e sem noção. Conduzia-os pelas cidades e, na hora do rango, algum gabola, diante do fausto do império soviético, insistia em saber: “Não tem rodízio aqui?” Como a palavra não constava do vocabulário do rapaz – aprendido na faculdade de Língua e Literatura Portuguesa, o que incluía um sofrível sotaque lusitano –, ouvia a explicação que lhe parecia surreal: “Rodízio, meu, é um restaurante no qual se pode comer até MOR-RER…”
Sergei deve ter suspeitado que os donos de restaurantes usavam a técnica de Pedro, o Grande [que tinha mais de dois metros e pés de moça]. Diz-se que embebedava seus convivas, sem aceitar recusas, levando-os ao coma ou ao óbito, com preferência para o segundo. Só que aqui, em vez da vodca, os filés. Morte por constipação carnívora de corpinhos tropicais, talhados para abacaxis, açaís e cupuaçus. Revoltava: nós no desfrute e os pobrezinhos dos Sachas com uma mísera bisteca que sumia no prato.
A contar pelas bélicas porções russas – com exceção para a sopa de beterraba (borscht), sempre saindo pelas bordas –, dava para entender o espanto. Depois de sete décadas de dieta soviética, agravadas num país com temperaturas abaixo de Curitiba, seis meses por ano, a fartura obscena na nação brasileira soava uma peça de ficção. Melhor: era imoral. Pior: absurda. Nem Tolstoi nem Dostoievski teriam imaginado algo parecido em suas aldeias.
Deu trabalho explicar a Sergei que aquele “até morrer” era força de expressão, repetido por obra e graça de nossa dramaticidade barroca. No Brasil também se morria de felicidade, só que não. Ou de inveja… E que, se um glutão comia 15 pedaços de picanha, cinco medalhões, 50 corações de frango, 20 asinhas e, por fim, um pratinho de moelas com farofa, para não chegar em casa e passar vontade – tudo remediado com Agarol e chá de boldo –, a maioria papava o suficiente pro primeiro arroto. O comerciante obtinha algum lucro. E o dia amanhecia em paz.
Anos depois, ao ler Majestade do Xingu, talvez o melhor romance de Moacyr Scliar, entendi o choque cultural que nossa comilança causava nos eslavos e congêneres. Scliar – gaúcho de origem lituana – conta na obra que naquelas plagas se dizia haver um país, o nosso, em que as laranjas apodreciam no pé. Um delírio, sendo que, lá, muitos sucumbiam por escorbuto, carentes de vitamina C. Vai ver que é por isso que o poeta russo Maiakóvski escreveu a sombria frase: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Bingo – esse sortudo se acabava na laranjas e comia em rodízios… até morrer, depois de traçar a última chuleta.
Viagens muito marcantes têm um efeito curioso. A gente nunca mais volta pra casa, o que pode ser uma espécie de demência disfarçada de cultura. O sintoma é sempre o mesmo – aumenta a leitura de noticiário sobre o local visitado. Não se perde um filme passado lá ou um livro pertinente. Depois de dez salgadas prestações, acreditamos que a nação dos outros passou a ser um pouco a nossa.
Guardo recortes de jornal sobre a Rússia, alguns impagáveis. Um deles fala da obsessão dos novos ricos por banheiros, o que é natural. Os russos só não sabiam o que era rodízio de pizza, como não faziam ideia – a não ser que fizessem parte da KGB – da delícia que é ter um reservado pra chamar de seu. Tudo era coletivo. Quando pingou dinheiro e licença para erguer um WC – com vaso sanitário e pia exclusivos –, exageravam no dourado e no fumê. Um trono de Romanov. Não é balela. O dissidente Joseph Brodsky, Nobel de Literatura, escreveu no soberbo Menos que um sobre a experiência de compartilhar privadas. Dava para reconhecer qual era o peido de Yuris e o das Natashas. Por aí vai o baile.
Dentre os filmes, recomendo Ana dos 6 aos 18, um trabalho injustamente esquecido de Nikita Mikhalkov, no qual acompanha 13 anos da vida de sua filha, numa URSS às voltas com a Perestroika. É também de Nikita O sol enganador, passado todo numa datcha – a casa de campo que os russos tanto veneram. Trata dos estragos morais causados pelo regime – e, em resumo, do pior das ditaduras: a que fica dentro das pessoas. Some-se o impagável Táxi Blues, de Pavel Lungin, sobre a forçosa convivência de um motorista feito a foice e a martelo e um talentoso instrumentista de jazz, craque em enxugar garrafas de vodca, “até morrer”.
No mais, curti tudo a que tinha direito – o Museu do Hermitage (onde uma tela de Da Vinci desbotava perto de uma janela), o palácio Peterhof e a Avenida Nevski de São Petersburgo (analisada com bisturi em Tudo o que sólido desmancha no ar, de Marshall Berman). A Catedral de São Basílio e a impressionante Salvador sobre o Sangue Derramado. O Kremlin, a Rua Arbat, o Parque Kolómenskoe, a Torre Borovítskaya. Comprei matrioskas e souvenires militares. Decepção mesmo foi não ter visto a múmia do Lênin, que estava em manutenção “bem na minha vez”. Devia circular pelo mundo, como uma relíquia do Vaticano.
Calculo que muito do que vi na Rússia recém-saída da Cortina de Ferro tenha se modificado, tanto tempo depois. É o que penso quando vejo russos e russas trajando grifes, vítimas da moda, aqui e ali. Havia muito autoritarismo nas relações cotidianas. Certa noite, com colegas de ofício, fomos seguidos na rua por policiais, destes de filme de 007, com uma espingarda na mão e cara de pepino azedo. Só saíram do nosso pé quando entramos no Hotel Ucrânia, um colosso, com instalações para uma Internacional Comunista inteira, mas cujos quartos tinham… colchões de palha. Me imaginei morto e jogado numa geleira, sem poder realizar o sonho de ser enterrado no Cemitério da Água Verde. Não foi daquela vez.
Como disse Sergei, na surdina, o país tinha 90% de cientistas e passou a somar 90% de camelôs. Havia sempre alguém na rua vendendo livros antigos e garrafinhas de bebida capazes de nos fazer dançar ao som da balalaika. No geral, esbanjavam gentileza. Numa tarde em que me perdi no centro de Moscou, encontrei quem falasse espanhol e francês, e me ajudasse. Gente nossa. Tempos depois, li um livro de Vivien Lando, que trabalhou com teatro naqueles bandas. Dizia que os russos eram como os ursos, símbolo do país. Abraçam gostoso, mas a depender, nos apertam sem dó, soltam as garras escondidas nas patas. Sabemos do que se trata.
De minha parte, devo garantir que achei o povo russo ótimo – que os amigos poloneses e ucranianos não me queiram mal por isso. Em especial, foi incrível conhecer a literata Svetlana Liubavina, nossa guia em São Petersburgo. Anteriormente ela tinha acompanhado o senador Roberto Requião – que esteve por lá como observador de uma eleição (assim nos disseram). De modo que, na comparação, nos achou uns doces, se me entendem. No mais, Estefânia – nome dela em português – me encheu de vaidade. Explico.
Quatro coisas fazem os paranaenses se sentirem universais – o físico César Lattes, o escritor Dalton Trevisan, o urbanista Jaime Lerner e o designer Oswaldo Miran. Em qualquer lugar do planeta, pelo menos um deles é figurinha. Pois Svetlana/Estefânia conhecia Dalton. Tinha lido O vampiro de Curitiba. De modo que o nome dessa cidade ao Sul do mundo lhe soava tão natural como Vladimir, Zagorsk ou Suzdal. Na volta, em gratidão, lhe enviei um exemplar de A polaquinha. Errei – devia ter lhe mandado um livro do Caio Fernando Abreu ou do João Gilberto Noll.
Ao contrário de Sergei e seus rodízios, Svetlana se preocupava com a contaminação dos costumes do Ocidente (a Rússia, como se sabe, tem o pé aqui e lá), que em breve desembarcariam às margens do Rio Moscou e do Rio Neva. À revelia de sua imensa cultura, assegurou que não havia gays na Rússia, exceto no Balé Bolshoi – “mas os bailarinos moram em prédios separados”. O detalhe arrancou suspiros encharcados de ironia da comitiva. No mais, os homens russos eram de fato duros na queda, afirmando masculinidade mesmo quando se atracavam aos beijos e abraços.
Com as mulheres, faziam estilo carcará. Lembro da recomendação explícita às gurias, para que se trancassem na cabine dos trens, dado o risco de estupro. Suspeito que os vídeos machistas dos torcedores brasileiros não devem ter causado impressão. Nesse quesito, somos muito parecidos aos russos. Só nos faltam os ursos. Estamos providenciando.